'Pensei em começar com umas 300 assinaturas', diz articulador de carta pela democracia

Documento passou de 300 mil adesões em apenas dois dias e surpreendeu seus autores

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São Paulo

É um meme perfeito. Como tudo começou: ao ser procurado para envolver a Faculdade de Direito da USP na articulação de uma carta pela democracia, seu atual diretor, Celso Campilongo, concordou e disse que poderia hospedar o manifesto no site da instituição.

"Seria bom ter umas 200, 300 assinaturas já na largada, para fazer volume", ponderou Campilongo.

Deu tudo certo: o documento, intitulado "Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado democrático de Direito", chegou ao site Estado de Direito Já! com pouco mais de 3.000 signatários; dois dias depois, passava de 300 mil adesões.

"Veja como pensei pequeno", diz o diretor, fazendo graça do próprio espanto.

Fachada do prédio da Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco, em São Paulo - Eduardo Knapp - 20.jan.22/Folhapress

Olhando em retrospecto, organizadores do movimento consideram que o sucesso, muito além do que imaginavam, só foi possível devido a um conjunto de fatores, entre os quais um grito metafórico que, para eles, muita gente mantinha travado na garganta.

"É um sentimento que a sociedade, de forma difusa, carregava no peito. Sem isso, a carta não virava desse jeito", diz o advogado Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do Prerrogativas, um grupo que reúne diversas pessoas do meio jurídico e que se somou aos autores do manifesto.

Ainda assim, na avaliação de Campilongo, pesou outro fator: o documento é suprapartidário e legalista.

"Para que todo mundo coubesse nesta carta, o tom é bastante ponderado, equilibrado, sem referência direta a ninguém", diz o diretor da São Francisco, como é conhecida a Faculdade de Direito da USP.

"Sempre houve a preocupação de não redigir nada exagerado e que apenas retratasse um valor: este valor é a democracia", afirma Campilongo.

Carvalho e outros membros do Prerrogativas foram alunos de Campilongo. Isso facilitou a aproximação entre eles quando o manifesto já estava pronto e seus autores começavam a buscar aquelas 200, 300 assinaturas.

O Prerrogativas, porém, fez mais do que assinar; passou a auxiliar na coleta de apoios e propôs horizontalizar o trabalho. Criado em 2014 e com atuação marcante contra a Lava Jato, o grupo alcança cerca de 2.000 pessoas em suas listas de discussão no WhatsApp.

E, embora seja um movimento identificado como pró-Lula, logo abraçou a ideia de que a carta pela democracia seria suprapartidária, sem defender o PT nem atacar o presidente Jair Bolsonaro (PL), de modo a angariar apoios inclusive de possíveis antagonistas na arena política ou judicial.

A atitude não era de todo inédita para o grupo. Em maio de 2020, o Prerrogativas ajudou a divulgar o manifesto "Basta", que reuniu profissionais do direito em torno de críticas a Bolsonaro, além da defesa da democracia.

À época, o texto passou de 700 signatários, entre os quais o ex-procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, estrela da Lava Jato, e um de seus maiores críticos, o advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay e defensor de alguns acusados na operação.

A rede de contatos veio a calhar. Kakay, por exemplo, conversou com diversos ministros aposentados do STF (Supremo Tribunal Federal) e, segundo conta, ouviu aceitação imediata de todos.

Outra integrante do Prerrogativas, a advogada Raquel Preto coletou centenas de apoios em todos os cantos do país e de diversas áreas, não só do campo jurídico.

"Mais adesões estão chegando, com pessoas querendo assinar, por perceberem que não se pode mais aceitar discursos abusivos, que desmereçam as instituições", diz Preto.

"É contra isso que a sociedade se levanta. Estamos vendo atos preparatórios de um golpe. Nossa democracia é jovem e tem o direito de amadurecer", afirma a advogada.

O Prerrogativas ainda fez a ponte com o 342Artes, um coletivo de artistas brasileiros que lutam contra a censura e a difamação.

"A recepção dos artistas é um espetáculo, está acontecendo algo muito potente, histórico. Eles não titubearam", diz Mari Stockler, gestora cultural e coordenadora do 342Artes.

Enquanto conversava com a Folha, Stockler recebeu uma mensagem da empresária e produtora Paula Lavigne: "Socorro, o celular não para". Era uma referência à quantidade de artistas querendo ler a carta e se engajar no movimento.

O 342Artes planeja lançar na próxima semana um vídeo em que diversos artistas leem trechos da carta pela democracia, a fim de atrair mais diversidade aos signatários.

Para o juiz federal Ricardo de Castro Nascimento, a iniciativa é mais que bem-vinda. "Mesmo que a gente chegue a 1 milhão de assinaturas, isso ainda não quer dizer que a gente represente a sociedade brasileira", diz.

A carta começou com um grupo de homens brancos, bacharéis em direito e, com uma exceção, sexagenários. "Isso é uma realidade. Mas estamos tentando ampliar a diversidade. Estamos atentos a essa questão e vamos trabalhar isso no evento do dia 11 de agosto", afirma o juiz.

Na data a que se refere, será feita a leitura da carta pela democracia em sessão na Faculdade de Direito da USP.

11 pessoas posam alinhadas para foto, sendo 6 homens e 5 mulheres
Comissão organizadora do ato em 11 de agosto, quando será lida a carta pela democracia; em pé, a partir da esq., João Moreno, Taube Goldenberg, Ana Bechara, Celso Campilongo, Raquel Preto, Gabriela Araujo, Thiago Pereira Lima, Luzia Cantal; agachados, a partir da esq., Roberto Mônaco, Ricardo de Castro Nascimento e Marco Aurélio de Carvalho - Divulgação
Erramos: o texto foi alterado

Marco Aurélio de Carvalho foi aluno de Celso Campilongo na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), não na USP, como dizia versão anterior deste texto.

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