Ato em 11 de agosto há 30 anos foi decisivo para queda de Collor

Participantes de marcha em 1992 aderem a carta pela democracia e esperam ação contínua contra golpismo de Bolsonaro

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São Paulo

O ato em defesa da democracia marcado para esta quinta-feira (11) remete a uma outra mobilização popular que, também em um dia 11 de agosto, em 1992, serviu de fagulha para a queda do então presidente Fernando Collor de Mello. Após 30 anos, parte dos manifestantes volta à luta.

Foram estudantes de cara pintada que puxaram naquele dia o levante em São Paulo contra o governo, com concentração no Masp e passeata até o largo São Francisco, mesmo local onde será lida em 2022 a "Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito".

Cecilia Lotufo, então com 17 anos, no ato de 11 de agosto de 1992 em São Paulo que abriu a série de manifestações contra Collor; ela hoje se opõe a Bolsonaro e assina a carta pela democracia da USP - Eder Chiodetto - 11.ago.1992/Folhapress

A marcha contra Collor não foi a maior daquele ano —atraiu cerca de 10 mil pessoas, segundo os registros da ocasião—, mas entrou para a história por ter sido a precursora de uma série de protestos que culminaria no impeachment. A "estudantada inerte" enfim reagia, noticiou a Folha na época.

"Foi uma surpresa a gente conseguir colocar tanta gente", recorda o ex-senador Lindbergh Farias (PT-RJ), que presidia a UNE (União Nacional dos Estudantes) na data e se programa para ir nesta quinta à Faculdade de Direito da USP, berço do documento endossado por mais de 858 mil pessoas.

Para o político, a faísca se alastrou em 1992 porque o movimento foi diversificado. "Buscar amplitude, trazendo diferentes segmentos, foi a chave daquela conquista e deve ser nossa meta agora também, só que com a bandeira da defesa da democracia e do sistema eleitoral."

Foi em reação ao 11 de agosto que Collor convocou as pessoas a saírem às ruas de verde e amarelo no domingo seguinte para apoiá-lo. Deu errado, como se sabe, e o preto foi a cor escolhida, em protesto.

O inimigo desta vez não está abertamente nomeado, mas transparece nas entrelinhas: é o presidente Jair Bolsonaro (PL), com sua tática golpista de contestar as urnas eletrônicas, enquanto as pesquisas eleitorais o mostram atrás do líder, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

"Mesmo para nós que defendemos o Lula, entendemos que uma coisa é fazer campanha do Lula, e outra é ter um movimento mais amplo", diz Lindbergh, 52, reforçando o caráter suprapartidário e cívico da iniciativa antigolpe.

Numa era pré-internet, ele desceu do carro de som em 1992 e foi até um orelhão ligar para a sede do PT atrás de Lula. Teve a sorte de achá-lo e o chamou para a rua. O petista, que já tinha concorrido à Presidência em 1989, foi até o largo São Francisco, onde fica a faculdade, e discursou.

Para o ex-senador, "embora as redes sociais ajudem a mobilizar, a agitação de rua ainda é determinante".

Cecilia Lotufo, que tinha 17 anos na época, estampou a capa da Folha no dia seguinte como símbolo dos "teens da rebeldia". Virou musa dos caras-pintadas. Ela hoje reprova o rótulo, mas não abandonou a militância por causas em que acredita. Assinou a carta ​da USP e pensa em voltar às ruas.

"A gente precisa mais do que nunca dessa união de todas as áreas e todos os lados para tirar essa corja, essa galera do mal que está aí, o Bolsonaro e toda a sua trupe", diz Cecilia, que já foi do PT, é filiada ao PSOL e virou empresária no ramo de pizzaria.

Na política, porém, o que ela menos quer é pizza. "Precisamos tirar o fascismo do poder e mudar nosso destino", diz a eleitora de Lula, que tem ressalvas ao PT, mas considera o partido "aberto ao diálogo".

Na visão de Cecilia, 1992 deixou o exemplo de como é importante "esse momento presencial" de manifestação. "É aquilo de estar no mesmo lugar olhando para as pessoas que são diferentes da gente e pensando: 'Agora a gente está junto'."

Parte da "beleza do que está acontecendo agora" é o reconhecimento mútuo, afirma a advogada Raquel Alves Preto, 55, que é uma das organizadoras da carta da USP e participou da marcha de 30 anos antes. "Fui às ruas contra Collor e já tinha ido nas Diretas Já. Em ambas de cara pintada."

Raquel não deixa passar a ironia do destino de que o presidente que sofreu impeachment seja atualmente aliado de Bolsonaro. Para ela, os dois momentos foram movidos por indignação, com a diferença de que lá a bandeira era delimitada em torno do impeachment, e hoje a revolta é múltipla.

"Foram rompidas barreiras do tolerável pelo senhor presidente [Bolsonaro]. Que bom que parece que a sociedade despertou para o fato de que não eram só bravatas e que isso precisa ser paralisado", afirma a advogada.

Estudantes com a cara pintada em marcha contra Collor em setembro de 1992; ato realizado em 11 de agosto daquele ano foi estopim para levante pelo impeachment - Eder Chiodetto - 18.set.1992/Folhapress

A mobilização em curso já trouxe ao menos um resultado concreto, na opinião do deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP), que tinha 21 anos quando foi um dos líderes da passeata em 1992: "Afastou segmentos institucionais e uma parte da elite econômica das aventuras golpistas de Bolsonaro".

"Lembro-me de todo o trajeto como se fosse hoje, as paradas, nós no carro de som dos DCEs [diretórios centrais dos estudantes]. Eu estudava medicina. Foi o despertar de uma geração que tinha entrado na universidade já no ambiente de redemocratização", conta Padilha.

Os ex-participantes, de forma geral, enxergam a situação atual como mais grave, tensa e preocupante.

"Em 1992, o regime democrático demonstrou sua potência, e neste momento está tremendo diante da ameaça que parte justamente da Presidência da República", diz o historiador Valerio Arcary, 65, que era professor e se juntou aos alunos naquela vez.

Ele, hoje ligado ao PSOL, tem memórias do que avalia como "uma explosão que sinalizou uma mudança mais profunda na estrutura da sociedade", com a aglutinação de vários segmentos contra Collor.

"Foi uma onda de luta política e social que incendiou a imaginação de milhões de pessoas. Os desafios que estão colocados agora são enormes, mas 'ninguém disse que seria fácil'", afirma Arcary, parafraseando o título de um livro que ele acaba de lançar, sobre militância de esquerda.

Também nesta quinta, antes da carta gestada na USP, será lido na Faculdade de Direito um outro manifesto em defesa da democracia que teve a adesão de mais de cem entidades, entre elas a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e a Febraban (que representa os bancos).

A advogada Raquel diz esperar uma nova leva de mobilizações, com "muitos jovens pelas ruas do Brasil", assim como ela fez nas décadas de 1980 e 1990. Outras universidades pelo país farão atos para reverberar o documento. Movimentos sociais também programam atividades.

O trajeto feito contra Collor será repetido nesta quinta por estudantes secundaristas e universitários, que marcaram a concentração às 9h no Masp, de onde partirão rumo à Faculdade de Direito.

No ato de 1992, a data tinha sido escolhida por ser o Dia do Estudante, tradicionalmente reservado para protestos. "O Centro Acadêmico 11 de Agosto [da USP] teve peso grande naquela organização. O largo São Francisco era palco da articulação contra o Collor. Por isso fomos até lá", relembra Lindbergh.

Atual presidente da UNE, Bruna Brelaz, 27, diz que a marcha já estava prevista para reivindicar investimentos em educação pública e acabou incorporando a celebração da carta. "O primeiro passo é fazer com que esse ato seja plural. E depois é perpetuar essa mobilização ampla pela democracia."

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