'Bolsonaro é mal-agradecido em relação à democracia', diz ex-ministro e orador em ato de 1977

José Gregori, que não vê risco de golpe, diz que Estado democrático de Direito é como o 5G

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São Paulo

O advogado José Gregori estava na Faculdade de Direito da USP em 1977 quando Goffredo da Silva Telles Jr. leu a famosa "Carta aos Brasileiros". Não foi mero espectador do ato histórico; fez o discurso que precedeu o do orador principal.

Hoje com 91 anos, assinou a "Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado democrático de Direito", que já passou de 750 mil assinaturas. Ao comparar os dois momentos, procura "traduzir" o tema central de ambos os documentos.

"Para as novas gerações eu digo: o Estado democrático de Direito é como se fosse o 5G", afirma Gregori, que foi ministro da Justiça no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

Homem branco idoso, de terno e óculos, sentando em uma cadeira
José Gregori, ex-ministro da Justiça e orador do evento em que foi lida a "Carta aos Brasileiros", em 1977 - Rubens Cavallari/Folhapress

Ele argumenta que, embora o Brasil não viva sob uma ditadura consolidada como naquela época, tem um presidente que acena com um regime fora dos limites do Estado democrático de Direito. Para Gregori, isso é um contrassenso.

"[Bolsonaro] é um mal-agradecido em relação à democracia, regime onde vicejou e procriou", afirma. "Ele deveria ser um dos maiores defensores da democracia e do Estado democrático de Direito, para o qual ele não colaborou em nada."

Afinal, foi por se tornar deputado numa democracia que Jair Bolsonaro (PL), no fim dos anos 1990, pôde falar em fuzilar o presidente da República e dirigir palavras de baixo calão a Gregori, então secretário dos Direitos Humanos.

Apesar da tensão institucional que o país enfrenta, o advogado não vê risco de golpe clássico, por achar que os militares não se entregariam a essa aventura, e considera que a carta a ser lida no dia 11 de agosto na mesma USP poderá ter peso histórico semelhante à versão de exatos 45 anos atrás.

Só não sabe se isso vai conter Bolsonaro caso ele perca a eleição. "Isso é indecifrável", diz. "Porque ele é tão contraditório, de uma lógica deslógica completa, que é difícil saber o que o irrita e o que o satisfaz."

O sr. participou de vários outros manifestos e atos contra o governo Bolsonaro. Nesses últimos dois anos, foi minha tarefa principal: assinar manifestos. Alguns até redigi.

Nenhum desses outros manifestos atingiu a repercussão da "Carta às Brasileiras e aos Brasileiros", já se aproximando de 1 milhão de assinaturas. A que o sr. atribui esse alcance? A consciência da nação brasileira estava de certa maneira arranhada, para não dizer muito machucada, com alguns fatos que impactaram a opinião pública. Primeiro, aquelas mortes na Amazônia [do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips]. Depois, a troca de tiros no Paraná [em que um bolsonarista matou um militante do PT].

De repente, o presidente toma a iniciativa de chamar todos os embaixadores. Quem tem alguma experiência sobre governar sabe que só se chama embaixador para anunciar uma coisa muito trágica ou então uma grande vitória.

Então todo mundo se interessou por essa notícia e viu uma coisa absolutamente inverossímil em qualquer fita de cinema, qualquer novela, qualquer jornal: o sujeito pôs em dúvida as eleições das quais vai participar, em um sistema do qual ele já foi beneficiário. É desse tipo de situação em que cada um, entre os quatro muros da sua casa, quer se manifestar de alguma maneira.

Bolsonaro afirmou que quem a assinou é cara de pau e sem caráter. O sr. gostaria de comentar? O presidente mais uma vez não está entendendo o Brasil. Quando tantas pessoas acham que é o momento de expressar sua vontade, é porque o elevador bateu na mola. É assim que ele tem que ver. Quem assinou é porque realmente achou que a assinatura evitaria um mal maior.

Mas eu acho muito difícil que as Forças Armadas brasileiras se iludam de que o Brasil possa satisfazer as aspirações de progresso e de liberdade com outro regime que não seja o Estado democrático de Direito. Achar que os militares possam se iludir a respeito de um regime forte é julgar o militar brasileiro atrasado, o que já não corresponde à realidade.

O sr. não vê risco de golpe? Não, porque aqueles que podiam reforçar o golpe são pessoas colocadas em posições que não abandonam o lápis e o papel. E veja que os regimes federais mais criativos, mais progressistas e mais pacíficos que o Brasil teve foram aqueles mais democráticos.

Os militares pecam quando fogem um pouco da sua seara. Qual é o militar que hoje está na berlinda? É alguém que quis ser ministro da Saúde sem entender direito sobre pandemia. Mas nas funções absolutamente militares eles têm poucos defeitos para serem criticados.

Os democratas, ainda que não tenham muita convicção democrática, são mais fortes. O Brasil é mais forte pela democracia do que pela não democracia. E a gente não chega aos 91 anos, com a experiência que eu tenho, com os compromissos que eu tenho pela minha experiência pregressa, sem estar movido por uma sinceridade absoluta.

Presidente, ouça o velho José Gregori. Viva bem esses dois meses [até a eleição]. Procure se reabilitar das dúvidas que o senhor terá deixado e chame, no dia seguinte à eleição, aqueles mesmos embaixadores e diga:

"Vocês tinham dúvidas a meu respeito. Agora vocês viram como eu trabalhei nesses dois meses em prol da democracia, em prol dessa eleição. Elas foram as mais limpas, as mais verdadeiras e as menos perturbadas pelos candidatos à Presidência".

É possível fazer alguma comparação entre este momento e o da "Carta aos Brasileiros" de 1977, na qual a atual se inspirou? A "Carta aos Brasileiros" mostrou que nenhum conceito válido de teoria política estava sendo utilizado pelo regime dos militares. Ela era muito didática no sentido de mostrar o que era aquele governo e como ele poderia ser um governo democrático, desde que seguisse a implementação de certas medidas que [Goffredo] foi lendo.

Eu, no meu discurso, acentuei muito isso, com a esperança de que eles aproveitassem o momento, que já tinha de certa maneira diminuído um pouco em relação ao momento de fúria da ditadura. A gente tinha confiança de que eles, convencidos de que estavam reduzindo o Brasil a um monarca e súditos, fizessem um presidente líder com cidadãos. Tinha uma nota de esperança na "Carta aos Brasileiros".

O momento [atual] é parecido. Quer dizer, não temos uma ditadura consolidada como naquela época, mas a gente está num momento em que o presidente acena com um regime que está extravasando os limites do Estado democrático de Direito.

E nós tínhamos o dever de dizer "Não!". O Estado democrático de Direito é um ideal que a gente dificilmente vai preencher, mas de qualquer maneira tem um núcleo duro do qual nenhum regime que se intitule Estado democrático de Direito pode olvidar.

Nessa carta, isso é colocado e, ao mesmo tempo, mostra que o Estado democrático de Direito é uma das coisas mais avançadas que existem em teoria política. Para as novas gerações eu digo: o Estado democrático de Direito é como se fosse o 5G.

E um camarada sem história que justifique a sua assertiva, sem doutrina nenhuma, quer dizer que o Estado democrático de Direito não é o suprassumo da teoria política?

Então por isso é que foi um movimento quase mais de fora para dentro do que de dentro para fora. A nossa carta de 77, a "carta mãe", não teve essa característica da "carta filha".

O advogado e jurista José Gregori discursa durante ato onde ocorreu a leitura da "Carta aos Brasileiros", em 1977 , no Largo São Francisco (Faculdade de Direito da USP), em São Paulo - Reprodução/TV Cultura

O sr. já disse que aquela carta teve importância não só simbólica. Por quê? Pelo sucesso que ela teve no ponto de vista de divulgação, toda pessoa que se metia a criticar [a ditadura], a primeira coisa que fazia era ler a carta. Ela dá um rumo do que é um Estado de Direito e um Estado de fato. E hoje eu digo que é um dos documentos brasileiros de maior longevidade. Eu não tenho dúvida de considerá-la como um documento de grande densidade.

O sr. imagina que a carta de agora possa ter um peso histórico parecido? Acho que sim, porque nós estamos num momento muito contabilístico. A eleição é daqui a dois meses. Metade da moeda é pesquisa; a outra metade, nesses últimos dias, é a carta. Ela cumpre uma finalidade didática de mostrar o que é um Estado democrático de Direito com uma densidade, com uma taxa ainda não satisfatória, mas muito melhor do que a gente teve no tempo em que mandavam os quartéis.

Mas eu acho que ela vai ter pouco peso eleitoral, embora, em compensação, não há debate que vá se fazer no Brasil em que não haja um jornalista para perguntar aos candidatos o que eles acham dessa carta.

O sr. acha que essa carta pode conter Bolsonaro caso ele perca a eleição? Isso é indecifrável. Nem o psicanalista, se é que ele tem, decifra o que é esse cérebro. Porque ele é tão contraditório, de uma lógica deslógica completa, que é difícil saber o que o irrita e o que o satisfaz. Eu acho que a gente só vai saber quem ele era realmente quando os ministros fizerem as suas memórias.

Bolsonaro há muito tempo defende a tortura e a ditadura. Como é para o sr., com seu histórico de luta pelos direitos humanos, perceber que tantos brasileiros ainda apoiam esse tipo de pensamento? Em primeiro lugar, Bolsonaro é mal-agradecido. A gente sabia [nos anos 1990] que tinha um deputado como ele, do baixo clero congressual, que [aproveitava] tudo que era beirada de legislação a favor de militares.

Mas, quando se pegavam as falas mais compridas dele, era um negócio tão alógico, tão fora de esquadro, que não se dava muita importância. A gente tinha a caneta na mão [durante o governo FHC] e, no entanto, ninguém pediu a cassação dele, ninguém o perseguiu.

E ele prosperou, porque se tornou uma espécie de S.A. política, colocando os filhos na política. Quer dizer que é um mal-agradecido em relação à democracia, regime onde ele vicejou e procriou. Ele devia ser –o que talvez ainda possa ser, porque nunca nego a possibilidade de alguém na 24ª hora se emendar—, mas eu digo que ele deveria ser um dos maiores defensores da democracia e do Estado democrático de Direito, para o qual ele não colaborou em nada.

Agora, sobre a eleição de 2018, essa ainda é uma história que está para ser contada. Tanto o PT como o PSDB não estavam numa situação muito confortável. A Lava Jato estava atuando, e atuando de uma forma diferente do que tinha sido toda a luta anticorrupção no Brasil, porque prendia nomes importantes.

A corrupção estava sendo o grande assunto. Então [surgiu] uma figura desconhecida, mas com muitos anos de Congresso, que se valeu de uma retórica muito apropriada naquele momento. E a facada fez o resto.

Raio-X

José Gregori, 91
Advogado, foi secretário nacional dos Direitos Humanos e ministro da Justiça no governo Fernando Henrique Cardoso. Em 1977, fez o discurso que precedeu a leitura da "Carta aos Brasileiros" na Faculdade de Direito da USP

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