Descrição de chapéu Folhajus

Livro revela bastidores do caso Battisti como exemplo de desequilíbrio na democracia

Autores discutem importância de haver equilíbrio entre políticos e burocratas

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São Paulo

Pedro Abramovay estava na sala do ministro da Justiça num dia de novembro de 2008 quando ouviu um diálogo que, à época, pareceu banal, embora tratasse da concessão ou não de refúgio ao terrorista italiano Cesare Battisti.

O então ministro Tarso Genro terminava uma conversa sobre esse tema com Luiz Paulo Barreto, seu secretário-executivo e presidente do Conare (Conselho Nacional para os Refugiados).

O ex-terrorista italiano Cesare Battisti, ao ser preso, em 2019
O ex-terrorista italiano Cesare Battisti, ao ser preso, em 2019 - Alberto Pizzoli/AFP

Ninguém ali imaginava que o assunto se tornaria uma das maiores controvérsias dos governos Lula (2003-2010), de modo que, quando Barreto perguntou como deveria votar na reunião sobre Battisti, o ministro respondeu: "Vota como tua consciência mandar".

Pois ficou com ele o voto de desempate no julgamento, e foi contra o refúgio.

O resto é história: o governo Lula revisou a decisão, provocando atritos com a Itália (que havia condenado Battisti por quatro homicídios), criando arestas com o STF (Supremo Tribunal Federal) e deixando um flanco explorado até hoje pelos adversários, ainda mais porque, em 2019, o italiano confessou os crimes.

O episódio é revelado em primeira mão em "A Democracia Equilibrista – Políticos e Burocratas no Brasil", de Abramovay e Gabriela Lotta. No livro, eles não se posicionam sobre o mérito, mas tratam a omissão como o maior erro de Genro no caso Battisti e como um dos exemplos de tensão mal resolvida entre técnica e política.

É que Barreto, funcionário de carreira especialista no tema, sabia que, se o Conare concedesse refúgio ao italiano, a posição seria definitiva. Mas, se o órgão rejeitasse o pedido, ainda caberia recurso –ou seja, por vias tortas, o peso daquela decisão terminaria dividido.

A questão que Abramovay e Lotta propõem é: Barreto poderia ter decidido sozinho, de acordo apenas com a consciência? Eles sugerem que não; dadas as óbvias implicações do julgamento, os agentes políticos jamais deveriam ter se omitido.

Sustentam, e aí está o ponto central do livro, que é fundamental para o Brasil encontrar o equilíbrio adequado entre a política e a técnica; à primeira, legitimada pelo voto, competem as escolhas, mas sempre dentro das balizas apresentadas pela segunda.

Dito de outra forma, nada de atropelar as instituições e a ciência, mas também nada de enaltecer o gestor em detrimento do político.

"A ideia do livro tem muito a ver com isso", diz Abramovay, "com essa confusão entre grupos políticos que se diziam técnicos, não políticos. Ao mesmo tempo, teve a emergência do bolsonarismo, e eu percebi o quanto tinham em comum."

Além disso, havia algum tempo que ele trazia na cabeça as experiências que viveu no governo Lula, quando ocupou diversos cargos.

"O título remete ao malabarismo entre forças diferentes, mas também à ‘esperança equilibrista’, como que apontando para aquela energia de reconstrução da democracia", diz, em referência a trecho da música "O Bêbado e a Equilibrista", da época da Lei da Anistia.

Se em 1979 a luta era contra a ditadura, agora, segundo o livro, seria o esforço para o Estado entregar os objetivos da Constituição, como construir uma sociedade livre, justa e solidária.

Esse esforço, argumentam Abramovay e Lotta, passa por deixar de demonizar a política e perceber que servidores concursados não são necessariamente portadores de todas as virtudes –basta lembrar dos funcionários de carreira envolvidos no esquema do Petrolão.

"A valorização de servidores públicos é essencial. Não há Estado democrático de Direito sem bons servidores públicos, que atuem em prol da sociedade e da Constituição", afirma Lotta, que é professora de administração pública da FGV-SP.

Ela lembra que os governos do tucano Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e do petista Lula foram cruciais para fortalecer a burocracia brasileira, com a contratação de pessoal, criação de carreiras e capacitação de servidores.

"O problema é terem feito isso sem pensar em como evitar consequências ruins do fortalecimento da burocracia, como o corporativismo", afirma Lotta.

"Tínhamos que ter avançado na criação de mecanismos de transparência, responsabilização e controle [da burocracia] que não gerasse disfuncionalidades e desequilíbrios em algumas áreas do Estado", diz ela.

O problema, eles sustentam, é que a sobrevalorização do discurso técnico muitas vezes oculta o interesse específico de grupos de servidores –seja interesse ideológico, seja patrimonial—, sem contar que reproduz o racismo e o machismo estruturais da sociedade.

No livro, eles trazem exemplos de atuações equilibradas, como na Lei Seca, bem como de desequilíbrios, entre os quais a Lava Jato chama a atenção –pelo paradoxo de agentes concursados olharem a política como algo tão negativo, sendo certo que eles próprios só ganharam poder e autonomia por causa de decisões políticas.

A Democracia Equilibrista - Políticos e Burocratas no Brasil

  • Preço R$ 69,90 (176 págs.)
  • Autor Pedro Abramovay e Gabriela Lotta
  • Editora Companhia das Letras
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