Saiba o que é e como funciona a emenda de relator

Conteúdos de desinformação sobre orçamento criado em 2019 circulam nas redes sociais

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São Paulo

No primeiro debate eleitoral entre os candidatos a presidente, em 28 de agosto, organizado por TVs Bandeirantes e Cultura e por Folha e UOL, Simone Tebet (MDB) insistiu em um assunto. Das oito vezes em que a expressão "orçamento secreto" foi citada, cinco foi ela quem falou.

Em uma delas, disse: "Agora, talvez, o maior escândalo da história do Brasil de corrupção, o tempo dirá: o orçamento secreto. Dezesseis bilhões de reais todos os anos, dizendo que está indo para o interior do Brasil, sabendo que essas notas são frias, que serviços não são executados, que esse dinheiro volta, na integralidade, para o bolso de quem o entregou".

Em seguida, o presidente Jair Bolsonaro (PL) teve direito de resposta atendido e falou, entre outros assuntos: "Orçamento secreto: eu vetei; o Parlamento derrubou o veto. É lei. O seu partido [PT], Lula, votou para derrubar o veto no tocante ao orçamento secreto. Não tenho nada a ver com isso."

O orçamento secreto é como ficaram conhecidas as emendas de relator, identificadas também como RP9. É uma ferramenta que permite que parlamentares façam o requerimento de verba da União sem detalhes como identificação ou mesmo destinação dos recursos.

Criado em 2019, no projeto de lei do Congresso Nacional número 51, o mecanismo ajuda o presidente a negociar com as bancadas do Congresso Nacional em busca de apoio político.

Foto feita do alto mostra o Senado, com bancadas de madeira e cadeira e piso azul; há poucas pessoas na sala
Plenário do Senado Federal, em Brasília - Marcos Oliveira - 11.ago.2021/Agência Senado

Nos últimos meses, o assunto ganhou notoriedade ao ser atrelado a suspeitas de fraudes e corrupção utilizando o dinheiro público, como nas compras de caminhão de lixo e a licitação bilionária do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para a aquisição de ônibus escolares.

Nas redes sociais, a emenda de relator se tornou tema de posts de apoiadores de Bolsonaro, seguindo suas afirmações no debate: que ele vetou o mecanismo e que o PT votou para derrubar o veto.

Porém as alegações de Bolsonaro não são totalmente verdadeiras. Ele vetou em parte o projeto. Inicialmente, o Congresso tentou viabilizar a RP9 e o presidente vetou a medida. Mas, depois, ele recuou do veto e encaminhou ao Congresso o texto que criou o mecanismo.

Além do erro ao afirmar que Bolsonaro vetou a medida, uma publicação viral no YouTube do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) engana ao afirmar que o "PT é o pai do orçamento secreto". O partido teve participação decisiva, mas não criou o recurso.

Depois de ter sido aprovado com folga na Câmara dos Deputados, o texto que mantém os repasses da emenda de relator enfrentou mais dificuldade no Senado, em novembro de 2021. A votação foi desempatada pelo senador Rogério Carvalho (PT-SE), que votou a favor da proposta, na contramão do que orientou e votou a bancada petista.

Usada neste momento pré-eleição, a desinformação é perigosa para os eleitores, que não devem fazer suas escolhas a partir de mentiras. Por isso, o Projeto Comprova decidiu explicar pontos importantes relacionados a esse tipo de orçamento.

O que é a emenda de relator?

Como o Comprova mostrou, orçamento secreto foi um termo criado pelo jornal O Estado de S. Paulo para definir a recém-criada emenda de relator-geral no Congresso Nacional, prática elaborada em 2019 e implementada em 2020.

De acordo com a Constituição brasileira, as emendas parlamentares são um instrumento do Congresso Nacional para participar da elaboração do orçamento anual. Os deputados e senadores têm, nesse caso, a oportunidade de indicar ao Executivo demandas de comunidades que representam. Atualmente, as emendas dividem-se em quatro tipos:

  • Individuais (RP6) – verba destinada individualmente a parlamentares, com caráter impositivo desde 2015 (ou seja, cada parlamentar decide onde alocar o dinheiro e essa emenda é obrigatória, precisa necessariamente estar no orçamento);
  • De bancada (RP7) – verba destinada às bancadas estaduais, com caráter impositivo desde 2019 (ou seja, emendas coletivas, elaboradas por deputados do mesmo estado ou região. Também obrigatória);
  • De comissão (RP8) – verba destinada às comissões temáticas do Congresso. Não são impositivas (ou seja, emendas coletivas de comissões permanentes da Câmara ou do Senado. Não é obrigatória).
  • De relator (RP9) – emenda que permite ao relator-geral do Ploa (Projeto de Lei Orçamentária Anual) alterar ou incluir despesas. Criada em 2019 e não é obrigatória.

A emenda de relator se diferencia das demais porque é definida pelo deputado ou senador escolhido como relator-geral do Orçamento a cada ano. Além disso, ao contrário das outras, não há critério definido quanto ao destino do dinheiro, o que dificulta a fiscalização sobre a execução da verba.

A manobra leva o apelido "secreto" porque não existem regras estabelecidas para a destinação dessas verbas e, conforme explica esta reportagem do UOL, não há transparência para acompanhar para qual área a emenda do relator está sendo destinada, e isso faz com que a fiscalização seja dificultada.

Além disso, ao contrário do que ocorre com as emendas parlamentares impositivas –aquelas que todos recebem igualmente, sem distinção de quem compõe a base ou a oposição– na emenda de relator não é possível saber qual parlamentar indicou o valor, já que a informação não é pública.

Após esta série de escândalos, em novembro de 2021, Rosa Weber, ministra do STF, determinou a divulgação do processo de definição e a execução das emendas de relator nos orçamentos de 2020 e 2021.

Além disso, mandou que fossem registradas, em plataforma eletrônica, todas as demandas parlamentares voltadas à distribuição desse tipo de emenda.

No fim do ano passado, o Supremo liberou o pagamento das emendas, depois que o Congresso aprovou novas regras de transparência, e deu prazo de 90 dias para que o sistema de monitoramento (com individualização, detalhamento e motivação das indicações) fosse instituído.

Após Weber negar o pedido de prorrogação de prazo para a implementação das medidas de transparência, o Congresso encaminhou, em maio deste ano, informações sem padronização e incompletas sobre a emenda de relator.

A justificativa foi de que os relatores dos orçamentos anteriores, deputado Domingos Neto (PSD-CE) e senador Márcio Bittar (União-AC), tiveram dificuldades de reunir os dados, já que não havia obrigação legal para isso à época.

Por isso, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), solicitou de forma genérica a todos os deputados e senadores que sinalizassem quais emendas de relator haviam sido apoiadas por cada um.

Cada parlamentar respondeu de uma forma. Alguns não detalharam os valores das emendas, nem os estados e municípios beneficiados. Três em cada 10 sequer responderam o ofício.

Início, veto e sanção

A emenda de relator iniciou-se dentro do Palácio do Planalto, no gabinete de Luiz Eduardo Ramos, o então ministro da Secretaria de Governo. À época, como já abordado por uma checagem do Comprova, Ramos era o responsável por fazer a ponte entre o governo e o Congresso.

Para viabilizar a proposta, o ministro resgatou um dispositivo incluído pelo Congresso na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), mas que havia sido vetado por Bolsonaro três semanas antes. Em 3 de dezembro de 2019, o ministro assinou o documento que criou a emenda chamada RP9. A nova lei, que alterou a 13.898, de 11 de novembro de 2019, foi sancionada pelo presidente da República em 18 de dezembro.

Ao contrário do que alegou no primeiro debate presidencial do dia 28 de agosto, realizado pela Band, portanto, Bolsonaro não vetou a emenda de relator. Conforme explicou o Estadão, o esquema foi criado por um projeto assinado pelo próprio presidente.

O que aconteceu foi uma tentativa do Congresso de viabilizar a emenda de relator por meio da LDO de 2020 e esta, de fato, foi vetada pelo mandatário da República. No entanto, o presidente recuou da decisão e mandou ao Congresso um texto próprio sobre a emenda.

Moeda de troca

A prática de distribuição de emendas, como aponta o UOL, seria utilizada como moeda de troca a fim de facilitar o trabalho da gestão Bolsonaro com as bancadas no Congresso Nacional, já que o pagamento das emendas de relator não é obrigatório constitucionalmente.

As emendas RP9 de relator-geral, no entanto, passaram a ser a mais atendidas pelo governo, como mostra o Portal da Transparência nos empenhos de 2022.

No primeiro ano de mandato, Bolsonaro sancionou R$ 30 bilhões em emendas de relator. Ele tinha a opção de vetar os recursos, mas decidiu autorizar o pagamento de 100% das verbas indicadas pelo Congresso. Com isso, segundo o Estadão, em três anos, o presidente entregou ao Congresso uma decisão sobre o que fazer com R$ 65 bilhões, que deveria ser de seus ministros.

Especialistas ouvidos pelo Estadão relacionam a emenda de relator com outros escândalos de corrupção descobertos em décadas passadas. Na reportagem, a professora e procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo Élida Graziane Pinto argumenta que a prática é um "drible" para turbinar recursos de emendas parlamentares que remonta o Anões do Orçamento — um esquema do início dos anos 1990 que culminou na instalação de uma CPI e afastamento de seis membros do Congresso, além de outros quatro que renunciaram ao mandato antes que a investigação fosse concluída.

No total, durante a gestão Bolsonaro, governo e Congresso destinaram R$ 65,1 bilhões do Orçamento para as emendas do relator. Desse valor, R$ 36,4 bilhões foram empenhados, etapa em que o dinheiro é reservado para ser pago quando o bem ou serviço for entregue.

No orçamento de 2021, conforme a CNN, as emendas de relator foram de R$ 18,5 bilhões – para comparação, as individuais custaram R$ 9,6 bilhões; as de bancada, R$ 7,3 bilhões; e, as de comissão, zero.

Sobre os valores da RP9 de 2021, parecer da área técnica do Tribunal de Contas da União (TCU) apontou críticas a seu uso ao recomendar a aprovação das contas do governo Bolsonaro, de acordo com a Folha.

"A utilização do instrumento das emendas de relator-geral tem gerado desafios para o planejamento e a implementação de políticas públicas, assim como dificuldades relacionadas à transparência e à motivação referente aos critérios definidos para a destinação dos recursos oriundos de emendas", diz o parecer, que, ainda segundo a Folha, "cita o risco de que a utilização sem critérios pode trazer vantagens eleitorais neste ano para os parlamentares que são beneficiados por elas".

Em julho de 2022, segundo a Agência Senado, o deputado Hugo Leal (PSD-RJ) indicou para execução R$ 12,3 bilhões de emendas de relator neste ano. Restaram quase R$ 4,2 bilhões que, por conta da eleição, só podem ser usados depois de outubro.

Para se ter uma ideia, de 16.636 "indicações para despesas", 11.026 foram feitas por 381 deputados, no valor de R$ 5,7 bilhões. "Outras 2.404 indicações têm como origem demandas de 48 senadores, com R$ 2,6 bilhões."

Participação do PT

Como mostrou a Folha, o voto do senador Rogério Carvalho (PT-SE) foi decisivo para que o Congresso aprovasse, em novembro de 2021, um projeto com novas regras para a emenda de relator, buscando atender a decisão do STF. Carvalho foi na contramão do que orientou a bancada petista e foi o único do partido a votar a favor.

A proposta foi aprovada com 34 votos a favor e 32 contrários ao texto – o senador foi o voto de desempate.

"Somos uma casa parlamentar. O que foi aprovado foi aprovado por unanimidade. E houve uma ingerência, uma forma de outro poder ingerir (sic) sobre o Legislativo. Como membro da Mesa do Senado Federal, que subscrevi todas as ações junto com os demais membros ao STF, caberia a mim ter a coerência na defesa da institucionalidade do Congresso", afirmou Carvalho ao justificar seu voto.

Na época, o PT emitiu nota assinada por sua presidente, Gleisi Hoffmann, em que classificou o voto do senador como "um fato grave". Segundo o texto, Carvalho "contrariou a orientação da bancada do PT no Senado, além das posições conhecidas da direção partidária" e "não cabe ao relator do Orçamento dispor de recursos bilionários para distribuir aos parlamentares".

Em julho de 2022, Rogério Carvalho foi um dos 13 senadores e deputados dos partidos PT, Rede, PSB e Pros que pediu que o TCU abrisse investigação contra o suposto uso da emenda de relator para bancar fraudes utilizando o Sistema Único de Saúde (SUS).

O Comprova tentou falar com a assessoria de imprensa do senador por mensagem de texto no WhatsApp e ligação, mas não obteve retorno.

Por que explicamos

O Comprova investiga conteúdos suspeitos sobre a pandemia, eleições presidenciais e políticas públicas do governo federal que circulam nas redes sociais. A seção Comprova Explica é utilizada para a divulgação de informações a partir de conteúdos que viralizam e causam confusão, como a emenda de relator. Desde o primeiro debate eleitoral a medida foi tema de vários conteúdos de desinformação. Publicações desse tipo, envolvendo candidatos à presidência, causam prejuízos ao processo democrático e atrapalham a decisão do eleitor, que deve ser tomada com base em informações verdadeiras.

No dia 1º de setembro, o Comprova publicou verificação sobre as emendas de relator afirmando ser enganoso vídeo que nega a existência do mecanismo. Anteriormente, em 12 de maio, o Aos Fatos apontou ser falsa a declaração de Bolsonaro de que as informações das emendas de relator não são secretas.

A apuração desse conteúdo foi feita por Folha e NSC e publicada em 7 de setembro pelo Projeto Comprova, coalizão que reúne 43 veículos na checagem de conteúdos virais. Foi verificada por Metrópoles, Alma Preta, Correio Braziliense, piauí, Plural Curitiba, GZH, A Gazeta, Estadão e O Popular.

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