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Francisco Razzo

Sem projeto, Lula apelou ao papel de salvador para voltar ao poder

Como Bolsonaro em 2018, petista apostou na retórica messiânica de que só ele pode resgatar país do abismo

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Francisco Razzo

Professor de filosofia e autor dos livros “Contra o Aborto” e “A Imaginação Totalitária” (Record), entre outros

Como a roda da fortuna, a democracia deve girar. Os governantes de ontem serão os governados de amanhã. Não há arranjo político mais equilibrado, vivo e dinâmico. Eleições periódicas impõem justo equilíbrio ao podere desagradáveis entraves a despóticas tentações.

No caso específico de escolher o presidente da República, o voto direto e majoritário representa o que há de mais soberano na democracia: a vontade do povo. Hoje, aos trancos e barrancos, isso prevaleceu.

Mas o que, afinal, ganhamos e perdemos com isso? Este segundo turno das eleições nos fez lembrar de que há um lado sujo nas disputas pelo poder.

Apoiadores de Lula (PT) durante apuração do votos no Largo da Prainha, na zona portuária do Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli

A maioria do povo brasileiro novamente escolheu ser governada por Lula. Por mais que a campanha do candidato petista possa ter lá seus méritos, a incompetência de Bolsonaro, seu principal adversário ideológico, pesou na consciência do eleitor insatisfeito.

É óbvio que não me refiro à incompetência de campanha. Bolsonaro perdeu por ter sido um dos mais incompetentes chefes do Estado brasileiro, pelo menos desde a redemocratização. O povo parece perdoar corrupção, mas não perdoa o descaso e a falta de empatia com o sofrimento alheio.

Cada vez mais fechado em sua base fanatizada de apoiadores, Bolsonaro deixou o país à deriva. Sua desumanidade jocosa no período da pandemia cobrou preço alto: o retorno do PT.

Nesse sentido, com a cumplicidade da classe artística e o apoio de uma imprensa comprometida com os ideais de esperança que ele representa, Lula não teve dificuldades em tirar vantagens da inépcia bolsonarista. A esquerda populista volta ao poder com aquela sensação, um tanto exagerada, de que o pior pesadelo passou. Como isso foi possível?

Bom, há algo de semelhante na vitória de Bolsonaro em 2018 e na do Lula hoje. Na época, muita gente escolheu Bolsonaro para "tirar o PT do poder".

Numa palavra, o bolsonarismo surgiu como um projeto reativo a tudo o que o petismo representava naquele momento: escândalos de corrupção, ameaça de controle da internet, apoio a ditaduras de esquerda, ameaça comunista, progressismo identitário. Enfim, toda a corrosão moral do país e a decadência política das instituições. O PT não pode se isentar de suas responsabilidades.

Pouco propositiva, a direita que ascendeu ao poder apostou na narrativa do medo e na retórica do conflito. Do petismo, soube incorporar o "nós contra eles" e levá-lo às últimas consequências. Dominou o algoritmo das redes, construiu memes, venceu no WhatsApp e levou as eleições.

Entretanto, com o país ainda mais dividido, o antipetismo de ontem se tornou o antibolsonarismo de hoje. Populistas, de esquerda e direita, são eficientes em seduzir o povo na disputa por cenários apocalípticos.

Em 2018, Bolsonaro ganhou muitas vantagens eleitorais por causa do "voto útil", e não pela convicção do povo em busca de um nobre estadista. Hoje, a roda da democracia girou, e o PT retorna ao poder com a mesma narrativa do medo e a mesma retórica odiosa do "nós contra eles". Ou seja: Lula voltou como reação "a tudo o que está aí".

A base fanatizada de eleitores petistas não encontrou dificuldade em tirar proveito da narrativa da política como esperança: "quem não está com Lula é fascista", Ciro Gomes e Neymar que o digam. Assim como o bolsonarismo de ontem, o difuso projeto petista de hoje é "do contra" e da "revogação". Em suma, um duro acerto de contas.

Não à toa, a palavra-chave do plano de governo de Lula foi "reconstrução". Segundo o documento de campanha, o Brasil está "devastado por um processo de destruição" em todos os níveis: econômico, político e social. "A fome, o desemprego, a inflação, o endividamento e o desalento das famílias" colocam em "xeque a democracia e a soberania nacional".

No princípio era o caos, e "a sociedade brasileira precisa voltar a acreditar na sua capacidade de mudar os rumos da História" —assim mesmo, com um eloquente H maiúsculo. É preciso, sempre com urgência, "superar uma profunda crise social, humanitária, política e econômica" cuja responsabilidade é, claro, do último governo. Enquanto a salvação, óbvio, só pode ser Lula.

Sinceramente, não há nada de substantivo no projeto petista. Só não digo que entregamos um cheque em branco para Lula porque ele imagina reabilitar o país de antes: revogação da reforma trabalhista, revogação do teto de gastos, fortalecimento das estatais e a mesma ladainha progressista de sempre: sem um governo paternalista —de esquerda, diga-se de passagem— dirigindo a vida do brasileiro, não há país. O programa político petista deixa explícito que só somos um povo enquanto há um Estado governado por um líder carismático e forte, tal como Lula.

Coincidentemente, esse era o clima ideológico das eleições de 2018. Lembro-me do discurso das redes a favor de Bolsonaro: "O Brasil está, definitivamente, à beira do abismo em todos os segmentos. É uma briga entre o bem e o mal. Entre a desgraça e a esperança. Bolsonaro não é nossa melhor opção, é a única, ou então é o mergulho no caos marxista completo". Substitua "Bolsonaro" por "Lula" e "marxismo" por "neoliberalismo" para provar como a roda de nossa fortuna gira.

Como superar a tragédia? Bom, assim como bolsonaristas de ontem, petistas de hoje também acreditam no seu mito de salvação.

Em seus discursos de campanha, Lula falava em pacificar o país. Só se esqueceu de mencionar que a lógica do conflito, do esgarçamento do tecido social, é tão petista quanto bolsonarista.

Aproveitemos, portanto, porque vivemos algo tão raro quanto um eclipse: o embate de duas religiões políticas, e não de dois projetos de país. Por enquanto, é o que restou da política.

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