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Entenda o que pode caracterizar crime em atos antidemocráticos diante de quartéis

Manifestantes podem responder por incitação e crimes contra o Estado democrático de Direito

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São Paulo

Organizadores e participantes de atos antidemocráticos realizados desde o fim das eleições diante de quartéis pelo país podem ser punidos por incitação e por crimes contra o Estado democrático de Direito.

As manifestações contra a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foram estimuladas pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), que, em um primeiro momento, condenou apenas os bloqueios de estradas feitos por seus apoiadores.

Em seu único pronunciamento após a derrota nas urnas, Bolsonaro afirmou que "manifestações pacíficas sempre serão bem-vindas". Ao longo do mandato, o presidente acumulou um histórico de declarações golpistas, levantando suspeita contra o sistema eleitoral sem nunca apresentar provas.

Manifestantes golpistas a favor do presidente Jair Bolsonaro na praça Duque de Caxias, no centro do Rio de Janeiro
Manifestantes em ato antidemocrático no centro do Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli-2.nov.22/Folhapress

Especialistas ouvidos pela Folha afirmam que protestos que pedem a intervenção militar atacam a própria Constituição e não estão protegidos pelo direito à liberdade de expressão. A punição para cada conduta deve ser avaliada de forma individual.

Manifestantes que exercem cargos públicos e se manifestam contra o Estado também podem responder a processos administrativos e sofrer punições específicas, a depender da carreira.

Entenda o que diz a legislação sobre os atos antidemocráticos:

Quais os limites para manifestações políticas e a liberdade de expressão?

A Constituição Federal estabelece que é livre a manifestação do pensamento. A liberdade de expressão, porém, não é um direito absoluto e não protege discursos que ferem a legislação e atacam o próprio Estado.

"Quando a manifestação passa a atingir algo que é considerado ilícito, o próprio Poder Judiciário vai criar as balizas e permitir essa manifestação ou não. A apologia ao nazismo e à intervenção militar violam bens jurídicos que são tutelados pelo Estado e que devem ser preservados", diz Alexandre Wunderlich, professor de direito penal da PUC-RS e autor do livro "Crime Político, Segurança Nacional e Terrorismo".

Atos em frente a quartéis pedindo intervenção militar são puníveis pela legislação?

Sim. Professores de direito afirmam que cada conduta deve ser analisada individualmente. Em tese, aqueles que participaram de atos com bandeiras golpistas podem responder por crime de incitação, previsto pelo Código Penal, com pena de detenção de até seis meses ou multa.

A lei do Estado democrático de Direito —sancionada em 2021 para substituir a Lei de Segurança Nacional, da ditadura militar— acrescentou que quem incita, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas e os Poderes e instituições também responde pelo crime.

"Quando se vai defronte a um quartel pedindo aos militares para intervir em um governo civil, claramente está se ferindo esse artigo. Além disso, a organização e o planejamento dos atos também configuram o delito de organização criminosa", afirma Diego Nunes, professor de história do direito penal da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).

O advogado e professor da USP Pierpaolo Bottini discorda. Na interpretação dele, a incitação só é punível quando há algum risco real, o que ocorreria caso a manifestação fosse feita pelo presidente ou por integrantes do alto escalão do governo.

Além desse delito, a nova legislação trouxe outras modalidades de crime, entre elas o de abolição violenta do estado. O delito é caracterizado pelo uso de violência ou grave ameaça para impedir ou restringir o exercício dos Poderes constitucionais. A pena pode chegar a oito anos de prisão, além da punição correspondente à violência praticada.

Para Lênio Streck, professor da Unisinos (RS) e um dos autores da nova lei, o artigo pode ser aplicado contra quem organizou e/ou financiou os atos nos quartéis e rodovias.

"Todas as pessoas que fecham estradas tinham o nítido objetivo de derrubar as instituições, pedir intervenção militar e contestar o resultado legítimo das urnas. Elas queriam um golpe de estado", diz.

Streck acrescenta que a lei não criminaliza qualquer manifestação política.

Há um dispositivo no texto que afirma que não é crime "a manifestação crítica aos Poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais".

"As manifestações [desta semana] não têm nenhum propósito social. Elas têm o objetivo de tumultuar, fazer locaute e gerar o caos e convulsão social para ruir o próprio sistema político", diz o professor.

O que diz o artigo 142 da Constituição Federal?

O dispositivo da Constituição estabelece o papel das Forças Armadas no país e diz que elas estão destinadas "à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".

O último trecho do artigo passou a ser usado em 2020 por extremistas bolsonaristas que pediam a intervenção dos militares no país diante das restrições da pandemia de Covid-19. A tese é rejeitada por instituições como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e a Câmara dos Deputados.

Manifestantes que usam esse artigo para pedir a intervenção podem responder pelo delito de incitação, diz Joana Machado, professora de direito constitucional da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora).

"Há uma mobilização da Constituição e uma tentativa de construção de um verniz jurídico para legitimar a tentativa de golpe", afirma.

Para Chiavelli Falavigno, professora de direito penal e de processo penal da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), essa postura é resultado da falta de construção de memória sobre o período da ditadura militar e do julgamento das arbitrariedades cometidas à época.

"Estamos pagando por essas transições feitas na forma de acordo. O pedido de intervenção é um tipo de demanda de um povo que não conhece a história do seu país, os dados da própria realidade", diz.

Qual é a diferença da intervenção federal?

A Constituição estabelece as hipóteses em que a União pode intervir nos estados e no Distrito Federal. Entre os exemplos estão a manutenção da integridade nacional, encerrar grave comprometimento da ordem pública e assegurar princípios constitucionais. Não há previsão de intervenção para contestar o resultado das eleições.

A professora de direito Constitucional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Carolina Cyrillo explica que não há nenhuma relação com o que é dito pelos manifestantes. Ela acrescenta que as regras da intervenção também são aprovadas pelo Congresso Nacional.

"Estão confundindo com a intervenção de um Poder no outro, o que não está previsto em lugar nenhum", afirma, acrescentando que assim como o uso do artigo 142, o pedido dos bolsonaristas não tem fundamento.

Em Brasília, manifestantes favoráveis ao golpe de Estado substituíram bandeiras a favor de "intervenção federal" pelo termo "intervenção militar" para evitar responsabilização. Para Carolina Cyrillo, o gesto só demonstra desconhecimento.

Atos que pedem intervenção militar e invasão do STF e do Congresso podem ser vetados previamente?

Dificilmente. Os especialistas afirmam que apenas uma investigação prévia demonstrando que o ato tem finalidade criminosa poderia gerar medidas preventivas para proibir a manifestação. Em caso contrário, isso poderia caracterizar censura prévia, o que não é permitido pela legislação.

Agentes de segurança e demais funcionários públicos podem ser punidos ao endossar ou participar de atos?

Sim. Agentes da Polícia Rodoviária Federal e da Polícia Militar que foram acionados para dispersar bloqueios nas rodovias e acabaram aderindo aos atos podem, em tese, responder por prevaricação.

O delito é previsto pelo artigo 319 do Código Penal, a conduta é caracterizada por atrasar ou deixar de praticar o dever para favorecer interesse pessoal. É punível com detenção, de três meses a um ano, e multa.

Funcionários públicos que exercem outros cargos podem, eventualmente, responder a processos administrativos por participar de atos contra a democracia. A depender da carreira cabem ainda punições específicas, caso dos advogados, que têm a defesa do Estado democrático de Direito como um dever profissional.

Crimes em atos antidemocráticos previstos no Código Penal

  • Artigo 286: Incitar, publicamente, a prática de crime
    Pena: detenção, de três a seis meses, ou multa.

    A mesma pena será aplicada para quem incita, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade.
  • Artigo 288: associarem-se três ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes
    Pena: reclusão, de um a três anos

    A pena aumentará até a metade se a associação for armada ou se houver a participação de criança ou adolescente.

Crime de Prevaricação

  • Artigo 319: Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.
    Pena: detenção, de três meses a um ano, e multa

Crimes Contra as Instituições Democráticas

Abolição violenta do Estado democrático de Direito

  • Artigo 359-L: tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais.
    Pena: reclusão, quatro a oito anos, além da pena correspondente à violência.
Erramos: o texto foi alterado

A pena para o crime de Abolição violenta do Estado Democrático de Direito pode chegar a 8 anos de prisão, não a 12, como afirmado em versão anterior deste texto

 

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