Descrição de chapéu Governo Bolsonaro

Comissão da Verdade seguiu lei, e Forças Armadas defendem o indefensável, diz ex-coordenador

Pedro Dallari vê ressentimento de militares com investigações sobre a ditadura, citadas como causa de resistência a Lula por terem sido abertas em governo do PT

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São Paulo

O professor e advogado Pedro Dallari, que foi o relator e último coordenador da Comissão Nacional da Verdade (CNV), refuta o argumento de que a investigação de violações na ditadura militar justifique a resistência de setores das Forças Armadas ao presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

O trabalho da comissão é apontado como um dos obstáculos na relação entre militares e o futuro governo, sob a justificativa de que as apurações se concentraram em crimes de agentes do Estado e ignoraram os cometidos pela luta armada. A CNV atuou durante a gestão da petista Dilma Rousseff.

O professor e advogado Pedro Dallari, ex-coordenador da Comissão Nacional da Verdade, no prédio do Instituto de Relações Internacionais da USP - Mathilde Missioneiro/Folhapress

Dallari diz que a comissão "cumpriu rigorosamente" a lei de sua criação, aprovada pelo Congresso, e que falar em perseguição a um dos lados "é um absurdo". Segundo ele, o escopo era restrito a atos do Estado porque os praticados por grupos de resistência já tinham sido processados na Justiça Militar.

O docente de direito e relações internacionais da USP atribui o ressentimento com a CNV a vozes isoladas, sobretudo da reserva, e afirma que as Forças Armadas "defendem o que é indefensável" ao se recusarem a admitir casos de tortura e morte. O relatório final se ateve a fatos, "não é uma narrativa interpretativa da história", segundo Dallari.

O professor, que votou em Lula e é crítico ao presidente Jair Bolsonaro (PL) —um notório saudosista do regime de exceção, considera necessário manter vigilância sobre a democracia brasileira, mas descarta risco de golpe ou ruptura institucional.

O sr. vê razões para a CNV ser apontada como empecilho à relação de Lula com as Forças Armadas, com a alegação de que as investigações olharam só para um dos lados? A lei aprovada pelo Congresso Nacional determinava que a comissão deveria apurar as graves violações de direitos humanos praticadas pelo Estado naquele período por meio de seus agentes. Do ponto de vista teórico e conceitual, quem viola direitos humanos é sempre o Estado.

O Congresso não mandou apurar eventuais atos criminosos praticados por organizações particulares, revolucionárias, sei lá. E há uma uma razão para isso: atos que teriam sido cometidos contra o regime por forças insurgentes foram investigados pelo Estado, por meios dos órgãos da Justiça Militar. O problema é que muitas vezes não houve nem julgamento, o que é o caso dos desaparecidos políticos e mortos.

Então, falar em outro lado tendo em vista essa realidade é um absurdo. Nós cumprimos rigorosamente o mandato que o Congresso Nacional nos deu.

Falar que a comissão foi parcial é, portanto, um argumento frágil? É ignorar um mandato legal. Não podemos ser acusados de ter agido de maneira adversa. Os fatos estão no relatório, são inequívocos. Tanto é que o próprio Estado reconheceu isso, ao pagar indenizações às vítimas e às famílias.

A lei afirmava que um dos objetivos da comissão era promover a reconciliação nacional. O fato de ainda suscitar atritos, oito anos após sua conclusão, indica que ela falhou? A comissão foi constituída com essa ideia, mas a finalidade dela era promover a memória histórica e a verdade. E foi o que ela fez. Produziu um relatório com um volume de informações que, ao descortinar a verdade factual, pudesse ser usado pela sociedade nessa perspectiva da reconciliação. Mas a comissão não teria como fazer mais do que fez.

Que elementos o sr. acha que embasam o ressentimento de setores militares com a CNV? Procuro evitar generalizações. Provavelmente, [existe] um desconforto de setores das Forças Armadas que não gostam do que foi apurado. Houve um cuidado muito grande da comissão de produzir um relatório centrado nos fatos. Ali não é uma narrativa interpretativa da história, é a verdade factual.

Houve inúmeras tentativas, judiciais inclusive, de bloquear a publicação do relatório ou mandar extirpar parte dele, e o Judiciário nunca acolheu. É indicativo de que o relatório é sólido. O fato de que haja militares e parte da sociedade talvez descontentes não o invalida. Não tenho como obrigar as pessoas a gostarem dele.

Por que o sr. diz que evita generalizar as críticas a militares? A comissão visitou instalações militares que foram locais de graves violações de direitos humanos. Levávamos antigos presos políticos para reconstituições e éramos acompanhados por militares, principalmente jovens oficiais, muitas mulheres.

Os ex-presos descreviam: "Aqui foi preso fulano, ali nós ouvimos os gritos de sicrano que foi assassinado". Era visível, e eu percebia, o constrangimento dos jovens e das jovens oficiais. Aquilo não era algo que eles achavam correto. Há toda uma nova geração de oficiais que não participou daquele período histórico e certamente não faria o que foi feito. É outro tipo de mentalidade.

Hoje, por conta desse ressentimento que existe de parte principalmente de militares da reserva, essas novas gerações ficam obrigadas a levar consigo uma carga muito pesada por um passado que não diz respeito a elas.

Concorda com o diagnóstico feito por pesquisadores e ativistas de que os frutos da CNV ficaram aquém do esperado? Tenho dificuldade de responder porque isso não guarda relação com o relatório da comissão, mas com o cenário político de implementação ou não das recomendações.

É evidente que, tendo em vista que nos últimos anos prevaleceu no Brasil uma posição política consubstanciada num governo contrário ao próprio espírito que presidiu a Comissão Nacional da Verdade, evidentemente a efetivação daquelas sugestões ficou num grau muito reduzido.

É uma constatação meio que evidente pela própria posição do presidente Bolsonaro. Quando do funcionamento da comissão, ele era deputado federal e fez muitos pronunciamentos na tribuna da Câmara contra o grupo. Certamente, ele levou esse sentimento para o seu governo.

O que o sr. considera necessário para se avançar rumo a alguma pacificação? Repito o que falei na época do relatório, usando uma analogia com a conduta do papa Francisco em relação à pedofilia. Ele tirou a Igreja Católica da postura defensiva e assumiu o seguinte discurso: os casos ocorreram, não deveriam ter ocorrido, não estão de acordo com a doutrina da igreja, vamos apoiar as apurações e pedimos desculpas. Isso, de certa maneira, exorcizou aquele demônio.

As Forças Armadas deveriam fazer a mesma coisa: reconhecer os fatos, em vez de ficar procurando justificar o que ocorreu, e dizer que aquilo não deveria acontecer. Não conheço nenhum documento oficial das Forças Armadas que diga que elas devem torturar e executar presos. Assumir a responsabilidade institucional, como recomendou o relatório, representaria uma virada de página.

Enquanto as Forças Armadas não derem esse passo, isso vai ficar indo e voltando. Elas ficam tendo que defender e obrigam as novas gerações de oficiais a defenderem, o que é indefensável do ponto de vista de direitos fundamentais, ou seja, que o Estado pode torturar e matar as pessoas. Isso é errado.

O sr. mantém a defesa de reabertura do debate sobre a Lei da Anistia? Seria um caminho no atual momento? Veja, é inevitável, né? Se não há nenhum gesto no sentido da superação desse cenário e as Forças Armadas continuam defendendo o que aconteceu, é quase uma decorrência natural o debate em torno da revisão da lei. Agora, se é factível ou não, isso eu não sei, não tenho elementos para avaliar.

Teriam brotado na sociedade brasileira manifestações favoráveis à ditadura mesmo sem a ascensão de um líder como Bolsonaro? Tomo cuidado nessa análise e acho temerário fazer uma correlação automática. O fato de o presidente Bolsonaro ter tido, tanto em 2018 quanto agora, votações expressivas não significa que a maioria do seu eleitorado comungue com essa parte da agenda dele, essa posição de nostalgia da ditadura. Esse traço existe em uma parcela, que não é majoritária. É claro que não quero minimizar essas manifestações. São coisas preocupantes.

Depois de uma fase de ataques e abalos, a democracia brasileira sobreviveu? Corre riscos? Não tenho dúvida de que estamos numa democracia. Embora com risco, né? Ela foi muito tensionada. O quadro institucional se revelou aquém da necessidade quando se deparou com um governo que, eleito democraticamente, agiu de maneira frontal contra a democracia.

A democracia sobreviveu porque, em parte, há um conjunto de instituições consolidado que funcionou, mas eu diria que, majoritariamente, porque há um sentimento na sociedade a favor da democracia como forma de governo [79% da população, segundo o Datafolha].

Esse período recente da história brasileira obriga as elites política, econômica, social e intelectual, na qual incluo a universidade, a procurarem entender a perda de conexão com parcelas significativas da sociedade que passaram a ver a possibilidade de buscar a solução para os problemas do Brasil na figura de um governante completamente avesso à democracia.

Com a ambiguidade de Bolsonaro e de setores militares às vésperas da diplomação e da posse de Lula, o sr. considera necessária alguma vigilância em relação à ordem democrática? Sem dúvida. Avalio que ainda vamos ter manifestações que podem ter caráter até violento, como já vem ocorrendo. Pode haver, sim, um quadro de risco. Não diria risco de ditadura, de golpe militar, isso eu não creio; mas de instabilidade institucional, de ataques terroristas. Temos que ter rigor no acompanhamento disso. É muito importante que haja um um fortalecimento das redes de proteção da Constituição e do Estado democrático de Direito.

RAIO-X

Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari, 63
Formado em direito e administração de empresas, é mestre e doutor em direito internacional e dirige o Instituto de Relações Internacionais da USP, onde também leciona. Foi nomeado em 2013 pela então presidente Dilma Rousseff (PT) para a CNV (Comissão Nacional da Verdade). Atuou como relator e foi o último coordenador do grupo, até 2014. Teve também carreira política, como vereador, deputado estadual e secretário municipal, sempre no PT. Trabalhou em órgãos internacionais como BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e OEA (Organização dos Estados Americanos), além de ser autor de livros e artigos nas áreas de direito internacional e relações internacionais.


O que foi a Comissão Nacional da Verdade

  • Criada em 2011 e instalada em 2012, após lei de autoria do Executivo, então liderado pela presidente Dilma Rousseff (PT), a Comissão Nacional da Verdade foi aprovada pelo Congresso Nacional, com prazo de funcionamento até 2014. A iniciativa, inspirada em experiências de outros países, gerou queixas de setores militares
  • O grupo analisou violações de direitos humanos ocorridas no regime militar que comandou o país entre os anos de 1964 e 1985. O trabalho foi conduzido por sete conselheiros, designados pela Presidência, e contou com a colaboração de dezenas de pesquisadores e assessores
  • O colegiado promoveu audiências públicas, recebeu documentos e fotos e colheu depoimentos de vítimas e acusados. Houve protestos de nomes ligados às Forças Armadas, que apontaram revanchismo e direcionamento ideológico nas apurações, feitas sob um governo de esquerda
  • O relatório final, com 3.500 páginas, expôs prisões, torturas e assassinatos. Foram identificadas 434 mortes e desaparecimentos de vítimas e responsabilizadas 377 pessoas. O documento também fez recomendações, como a de que as Forças Armadas reconhecessem seu papel nas violações
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