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Governo Lula transição de governo

PT é quem sobrou para resolver velhos problemas e os criados por Bolsonaro

Com Lula no Planalto, partido criado nos anos 80 terá agora como um dos desafios reorganizar a democracia brasileira

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Celso Rocha de Barros

Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra), autor de "PT, uma História" e colunista da Folha

O Partido dos Trabalhadores é o maior vencedor de eleições presidenciais da história do Brasil. Ganhou 5 das 9 eleições da Nova República. Ficou em segundo lugar em todas as que perdeu. Esteve em todos os segundos turnos.

Os outros dois maiores vencedores, o velho PSD (1945-1964) e o PSDB, somados, venceram 4 vezes.

Entre os partidos que disputaram com o PT até hoje, dois acabaram (o PRN de Collor e o PSL de Bolsonaro). O PSDB, maior rival dos petistas, é hoje uma sombra do que já foi: perdeu as fortalezas de São Paulo e Minas Gerais para direitistas mais radicais e sua bancada no Congresso tem o mesmo tamanho da do PSOL.

Depois de 1989, quando o PT iniciou seu processo de moderação programática, o partido só perdeu eleições presidenciais para o Plano Real, uma imensa realização tucana; e quando Sergio Moro, em um julgamento irregular, impediu Lula de concorrer em 2018.

Lula em cerimônia de encerramento dos grupos de trabalho da transição, no CCBB, em Brasília - Pedro Ladeira-13.dez.22/Folhapress

A capacidade de sobrevivência do PT é ainda mais impressionante tendo em conta o tamanho da crise que atingiu o partido em 2015-2018.

A Lava Jato atingiu em cheio a direção do partido. Os erros de política econômica dos dois anos anteriores cobraram seu preço. Dilma Rousseff sofreu impeachment. O partido foi massacrado nas eleições municipais de 2016, perdendo mais da metade de suas prefeituras. Em 2018, Lula foi preso.

Parecia óbvio que o PSDB venceria a eleição presidencial daquele ano, e talvez uma outra força de esquerda, como PSOL, PDT ou a Rede Sustentabilidade, tomasse o lugar do PT na liderança da esquerda brasileira.

Quatro anos depois, Lula subirá a rampa do Planalto neste domingo (1º) como o primeiro brasileiro a derrotar um presidente que concorria à reeleição.

Não há dúvida de que o PT tem muito a agradecer à direita brasileira por sua ressurreição. Do impeachment de Dilma ao não impeachment de Bolsonaro, é difícil encontrar uma boa decisão da direita brasileira nos últimos oito anos.

Além disso, como primeiro partido brasileiro criado fora do Estado, o PT tem uma base em movimentos sociais e uma militância que lhe permitem sobreviver bem na oposição, como teve que fazer nos últimos anos.

E sobretudo: em um país desigual como o Brasil, seria surpreendente se o eleitorado, em eleições majoritárias, não votasse no partido da redistribuição de renda.

Caricatura/colagem do designer espanhol Asier Sanz.  O presidente Luiz Inácio Lula da Silva feita é retratado com frutas, amendoins, coco, uvas, alface, manga. As comidas são a textura e as formas da ilustração
Caricatura/colagem do presidente Lula feita com comida (frutas, amendoins, coco, uvas, alface, manga) - Asier Sanz

Por outro lado, se os petistas se mostraram competentes em se organizar fora do Estado e na luta por redistribuição, sempre puderam contar com instituições que evoluíam na direção certa, tornando-se cada vez mais parecidas com as de democracias estáveis.

O PT e os movimentos sociais que o sustentavam puderam se organizar de maneira crescentemente livre à medida que a transição democrática progrediu nos anos 80.

Quando Lula assumiu a Presidência em 2003, sucedeu um governo indiscutivelmente democrata, que havia conseguido reestabelecer um mínimo de funcionalidade para o capitalismo brasileiro. Até hoje, foi a única transição pacífica entre esquerda e direita de nossa história.

O PT foi importantíssimo na construção da democracia brasileira, mas o PMDB e sua dissidência tucana entregaram grande parte do "instituições funcionando" que permitiu ao PT colocar em prática seu programa.

Nos últimos anos, Jair Bolsonaro desorganizou grande parte dessas conquistas da democracia. Foram anos de caos institucional e guerra entre os Poderes, de sucessivas tentativas de golpe por parte do presidente da República, de deterioração moral no debate público, de desmonte de políticas públicas que todos já considerávamos permanentes, como a política de vacinação.

Nomes de generais voltaram a frequentar o noticiário político, um sinal evidente de regressão ao nível de país vagabundo.

Bolsonaro mudou a Constituição três meses antes da eleição para poder gastar mais dinheiro durante a campanha.

Dias antes da posse, um terrorista bolsonarista foi preso tentando explodir o aeroporto de Brasília. Graças ao bolsonarismo, o Brasil é muito pior em 2022 do que era em 2003, quando Lula assumiu a Presidência pela primeira vez.

Isto é, dessa vez o PT não vai poder apenas implementar suas políticas públicas preferidas. Vai ter que reorganizar a democracia brasileira. Quando o PMDB fez isso nos anos 80, acabou perdendo sua identidade ideológica e fracassando na gestão da economia. O PT vai saber fazer melhor?

Ao contrário do que diz boa parte dos analistas, os sinais emitidos por Haddad sobre a gestão econômica são bons. Mas os desafios são muito grandes.

Desde que a ditadura quebrou o Brasil no começo dos anos 80, nunca mais tivemos bons índices de crescimento. O crescimento mais rápido dos dois governos de Lula foram, em boa parte, consequência do superciclo das commodities, que não deve se repetir agora.

A economia brasileira precisa ser bastante reformada para tornar-se capaz de competir globalmente. O novo governo petista vai saber encaminhar esse processo sem gerar efeitos sociais adversos? Ninguém conseguiu até agora.

Nos últimos anos, enquanto Bolsonaro tentava destruir a democracia, um outro processo ocorria paralelamente –e com mais sucesso: a recomposição da classe política após o choque da Lava Jato.

Esse processo teve momentos positivos, como a reforma política de 2017 e o reforço do financiamento público de campanha, velha bandeira petista. Com o financiamento público, a corrupção ao menos se tornou opcional para os políticos brasileiros que querem se eleger.

Mas o pós-Lava Jato também teve momentos trágicos, como o desmonte dos mecanismos de combate à corrupção, acelerado por Bolsonaro.

Com presidentes abalados por escândalos e crises, o Congresso alterou o processo orçamentário para tomar poder da Presidência, o que ameaça a funcionalidade do sistema.

Justamente os setores mais fisiológicos do centrão saíram fortalecidos da crise da Lava Jato, porque a disputa presidencial tornava os escândalos do PT e do PSDB mais visíveis.

O que Lula vai conseguir fazer com o que sobrou da classe política? Que mecanismos de combate à corrupção podem ser implementados para que o fim da Lava Jato não se torne um vale-tudo que já deixe encomendado o próximo levante populista?

Finalmente, o que Lula vai fazer com a classe que ajudou a criar, com o que já foi chamado de "Nova Classe Média" mas que é, no fundo, uma classe trabalhadora não miserável?

Muita gente dessa turma votou em Bolsonaro em 2022. O que é possível fazer para que tenham empregos melhores, digamos, na indústria? Ou para que os empregos que têm, digamos, como entregadores de comida, lhes ofereçam condições melhores de trabalho?

O que é possível fazer pelos brasileiros pobres que pretendem se estabelecer como empreendedores? Como garantir programas de formação profissional que de fato gerem aumento de renda, como o Senai que Lula frequentou na juventude?

Além das tarefas de governo, como ficará a autoimagem do PT nos próximos anos, quando terá que se posicionar como líder de uma federação de centro-esquerda?

Na prática, o PT funcionou nas últimas décadas como o grande partido social-democrata da América Latina. Mas o debate interno do partido nunca acompanhou esse processo.

Que ideias os intelectuais petistas criarão para dar conta do novo cenário? O que saberão aproveitar de outras tradições de pensamento? Que diálogo o PT estabelecerá com a esquerda mundial?

O PT não foi criado em 1980 para realizar as tarefas que agora tem diante de si. Na crise política que já vai completar dez anos, o PT caiu primeiro. Entretanto, em 2023, é o último cara em pé. É quem sobrou para começar a resolver tanto os velhos problemas que Bolsonaro não teve interesse em resolver quanto os novos problemas que Bolsonaro criou.

Torço sinceramente para que o PT consiga ao menos dar início a essa reconstrução. Torço para que, daqui a quatro anos, ou o PT vença de novo, por ter sido bem-sucedido, ou dê lugar a uma centro-direita expurgada de bolsonaristas, algo que jamais teria condições de aparecer sem a vitória de Lula em 2022.

Torço, enfim, para que o primeiro experimento de partido brasileiro criado fora do Estado, uma das experiências social-democratas mais interessantes do sul global, sobreviva aos enormes desafios dos próximos anos.

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