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Em direitos humanos, o que era ruim ficou pior, e Brasil encara desafios complexos

Volta da fome se soma à degradação de problemas crônicos, como a destruição ambiental e a violência de Estado

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São Paulo

Era difícil esperar progresso no campo de direitos humanos no mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Sua trajetória se notabilizou por falas homofóbicas, racistas e misóginas e pela defesa do regime militar, da tortura e da execução sumária por forças de segurança pública.

A retórica de que "direitos humanos servem para defender bandido" não é original e ecoa o contexto de estreia do tema no debate público nacional: na defesa de presos políticos alvo da ditadura.

Aglomeração no horário do banho de sol no CDP (Centro de Detenção Provisória) de Pinheiros
Aglomeração no horário do banho de sol no CDP (Centro de Detenção Provisória) de Pinheiros, em São Paulo, em 2021 - Reprodução Defensoria Pública de SP

No pleito presidencial de 2018, 2 a cada 3 brasileiros diziam que "direitos humanos defendem mais os bandidos", segundo pesquisa Ipsos, e metade afirmava não saber ao certo o que são direitos humanos.

Direitos humanos são garantias e liberdades que constituem a condição humana e, portanto, são de todo ser humano, sem discriminação. O direito à vida, a não ser escravizado ou submetido à tortura, a um processo justo, à liberdade religiosa, à educação e à propriedade privada são alguns exemplos.

A incompreensão sobre o tema foi combustível para piorar aquilo que já era ruim, definido por desigualdades extremas atravessadas por um forte marcador racial —o chamado racismo estrutural.

Aos abusos e às negligências históricas do Estado brasileiro somaram-se o retorno do país ao mapa da fome, o aumento de mortes evitáveis e da pobreza, os recordes no desmatamento, de violência contra a mulher, contra ativistas e pessoas trans, além da máxima histórica de pessoas encarceradas.

Parte do resultado está no ranking de 2022 do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), da ONU (Organização das Nações Unidas). O Brasil teve a segunda queda consecutiva em 30 anos.

"O chocante é que, para qualquer direção que você olhe, houve retrocesso no cumprimento das obrigações de direitos humanos no país", diz Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil.

Quais os principais desafios no campo dos direitos humanos? Além dos problemas crônicos ligados ao racismo estrutural e à violência de Estado, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) terá de enfrentar neste mandato a urgência da questão ambiental e da fome, os entraves ao direito de defesa e um sistema prisional que apresenta um "estado de coisas inconstitucional", como já admitiu o STF (Supremo Tribunal Federal).

"Também vamos lidar com o desmonte feito nos espaços de participação social e nas políticas públicas nas áreas indígena, de mulheres, pessoas negras e LGBTs", diz a advogada Sheila de Carvalho, presidente do Comitê Nacional para Refugiados (Conare) e ex-diretora política do Instituto de Referência Negra Peregum.

Nos últimos anos, foram enfraquecidos órgãos de fiscalização nas mais diversas áreas relacionadas aos direitos humanos, como a de trabalho análogo ao escravo, de crimes ambientais, de proteção dos povos indígenas e de combate à prática de tortura em instituições prisionais, entre outras.

"Não basta ter Constituição Cidadã se não temos órgãos de fiscalização que funcionem em prol das populações mais vulneráveis", afirma Camila Asano, diretora de projetos da Conectas Direitos Humanos.

Quais questões são urgentes? A fome impôs o tema como prioritário. Sem alimento, não se consegue trabalhar ou estudar e é preciso se humilhar para sobreviver. A insegurança alimentar aumentou 2,5 vezes desde 2018 no país e hoje atinge 33 milhões de brasileiros, segundo estudo da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) do ano passado. Ela é desproporcionalmente maior no Norte e Nordeste, na zona rural, entre mulheres e entre pessoas negras.

De acordo com o levantamento (a partir de entrevistas em 12.745 domicílios, de todas as unidades da federação), 1 a cada 3 brasileiros fez alguma coisa em 2022 que lhe causou vergonha, tristeza ou constrangimento para conseguir alimento, numa questão muito ligada à economia.

Em 2022, o Brasil retornou ao mapa da fome da ONU, categoria das nações que tem mais de 2,5% da população com falta crônica de alimentos. O Brasil tem 4,1%. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar foi extinto em 2019 por Bolsonaro.

Clima é outra prioridade que se impôs pela explosão da destruição da floresta amazônica nos últimos anos e pela intensificação de eventos climáticos extremos mundo afora.

Quais questões são persistentes? Em sua maioria, orbitam em torno da segurança pública e do sistema de Justiça criminal, como a prática de tortura por parte do Estado ou a violação do direito de defesa.

Persistente também é o viés racial dessas questões, expresso na representação desproporcionalmente alta de pessoas negras entre as mortas por forças de segurança pública (84,1% são negros) e entre aquelas encarceradas (67% negra), numa sociedade em que pouco mais de 56% se declaram negras.

"Ao focar o policiamento ostensivo, não na investigação que ajuda a desmantelar redes criminais, cria-se uma política de controle de determinados territórios e corpos que não estão protegidos pelas malhas do crime organizado", afirma Mariana Dias, diretora-executiva do IDDD.

Como a Covid dificultou o acesso à Justiça? A suspensão de audiências de custódia levou à sua virtualização, pelo uso de videoconferência. Criada em 2015 para assegurar direitos fundamentais de pessoas presas, a audiência de custódia é a apresentação ao juiz, em até 24 horas, de quem foi preso.

"A virtualização das audiências compromete parte da sua finalidade, já que não dá para detectar tortura por meio de uma tela nem saber se a pessoa está sendo constrangida ou não em suas respostas", afirma Janine Salles de Carvalho, secretária-executiva da Rede Justiça Criminal.

Mariana Dias, do IDDD, cita que na audiência cabe também ao juiz analisar se a prisão "respeita garantias individuais e se existe a necessidade de se decretar prisão preventiva ou aplicar medidas alternativas".

Qual o cenário e como lidar com o sistema prisional? "O sistema prisional do país viola o direito à dignidade e não garante acesso a saúde, educação e trabalho", diz a diretora do IDDD sobre as condições enfrentadas pela terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 820 mil pessoas.

Ela ilustra parte das dificuldades de reinserção de quem passa pelas penitenciárias do país, nas quais imperam superlotação, tortura e outros tratamentos degradantes, como a falta de alimentação adequada.

"Quando você coloca nesse sistema uma pessoa que não praticou crime grave ou violento e que não está envolvida com redes criminosas, promove o crime organizado", afirma Dias.

Existem medidas alternativas à restrição de liberdade na lei brasileira, mas que pouco são implementadas, levando às prisões quem não precisava estar lá. Soma-se a esse cenário falhas nas investigações e no processo penal que também acabam por levar inocentes a centros de detenção.

Políticas de desencarceramento são vistas como essenciais, entre as quais mudanças na Lei de Drogas, considerada cara e pouco eficiente. A lei de 2006 fez o percentual de presos acusados desse tipo de crime saltar de 15% do total para, em 2017, 30% entre homens e 59% entre mulheres presas.

"É inadiável repensar a política de drogas de um olhar dos direitos humanos, jamais como problema de direito penal e segurança pública", afirma Mariana Dias.

A guerra às drogas, diz ela, "é uma guerra contra as pessoas, em especial as negras, e não tem diminuído a oferta nem a demanda por essas substâncias."

A violência de Estado aumentou no país? De 2013 a 2021, a cifra de mortes por policiais aumentou quase 200%, chegando a 6.412 pessoas. A queda de 5% em 2021 mudou pouco o quadro. O número representa 13% do total de mortes violentas intencionais de 2021.

"Uso excessivo da força coloca em risco civis e também policiais", afirma Maria Laura Canineu, diretora do Brasil da Human Rights Watch, chamando a atenção para o alto número de policiais mortos e de suicídios.

"É crucial um plano de redução da letalidade policial com apoio da sociedade civil e das comunidades afetadas. Os abusos devem ser investigados por promotores independentes, não pela própria polícia", diz.

Aqui falta atuação federal na criação de mecanismos de transparência, como no uso de câmeras acopladas a uniformes de policiais, apontado como fator de proteção policial e de queda nas mortes provocadas por forças de segurança. A medida é apoiada por 90% dos brasileiros em SP, MG e RJ.

Já a prática de tortura, de raízes no Brasil Colônia escravagista, teve sua fiscalização ainda mais prejudicada em 2019, quando um decreto presidencial exonerou peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e abriu vagas sem remuneração.

Criada em 2013, a entidade tem só 11 peritos responsáveis por visitar estabelecimentos de privação de liberdade de todo tipo, em todo o país. São presídios, hospitais psiquiátricos, abrigos de pessoas idosas, instituições para crianças e adolescentes e centros militares de detenção disciplinar. A conta não fecha.

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