Bancada evangélica põe na mira atos de Lula sobre igualdade de gênero e raça

Deputados se reuniram com Arthur Lira para pressionar por mudanças; ministérios dizem que normas são fundamentais

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Brasília

Uma das bancadas mais poderosas do Congresso Nacional, a Frente Parlamentar Evangélica está em campanha contra uma lista de normas afirmativas editadas pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), entre elas a que instituiu o programa de equidade de gênero e raça no SUS e a que criou grupo para o enfrentamento da discriminação contra religiões de matriz africana.

A Folha teve acesso à lista elaborada pela bancada, que foi levada na semana passada ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e ao líder do governo na Casa, José Guimarães (PT-CE).

Em linhas gerais, os deputados que lideram a frente dizem considerar que o governo está usurpando a função do Congresso em legislar sobre esses temas, além de verem nas normas o que chamam de "ideologia de gênero" —termo cunhado por grupos religiosos de direita para atacar ações em defesa da comunidade LGBTQIA+.

O presidente Lula (PT)
O presidente Lula (PT) - Carl de Souza-30.set.22/AFP

No topo do índex elaborado pela bancada está a portaria 230/2023 do Ministério da Saúde, que instituiu o Programa Nacional de Equidade de Gênero, Raça e Valorização das Trabalhadoras no SUS (Sistema Único de Saúde).

A portaria, lançada na véspera do Dia Internacional da Mulher (8 de março), estabelece, entre outras diretrizes, "promover a equidade de gênero e raça no Sistema Único de Saúde buscando modificar as estruturas machista e racista que operam na divisão do trabalho na saúde".

A portaria atraiu a ira de evangélicos principalmente por conter, em seu anexo, diretrizes como o "enfrentamento do machismo cultural, das formas de misoginia, sexismo discriminação étnico-racial, religiosa, geracional, orientação sexual e identidade de gênero ou quaisquer outras formas de preconceito"; e a "inclusão da temática da orientação sexual e identidade de gênero nos processos de educação permanente desenvolvidos pelo SUS".

"Esse [a portaria], para mim, é o mais grave, porque ele deixa em aberto, o que nunca existiu numa portaria, a questão de ideologia de gênero. Ela botou todo o arcabouço da ideologia de gênero nos anexos, e aí eu acho que isso é gravíssimo", afirma o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ).

"Abre um precedente e tem financiamento público na formação de médicos, de enfermeiros, fisioterapeutas, toda área da saúde com dinheiro do SUS para esse tipo de política pública", completa.

Sóstenes presidiu a frente evangélica em 2022 e atualmente é o segundo vice-presidente da Câmara.

Ele disse ainda que, na reunião, o líder do governo se mostrou surpreso com a extinção da Senapred (Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas).

Guimarães teria afirmado na ocasião desconhecer esse ato, acrescentando destinar emendas parlamentares para comunidades terapêuticas conveniadas à Senapred, cujo acolhimento geralmente é baseado no isolamento, abstinência e religiosidade.

Após pressão de setores evangélicos, o governo Lula criou o Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas, embora o governo diga que o modelo está sob revisão.

Outro flanco de ataque dos evangélicos é contra a criação, por decreto, de um grupo interministerial para elaborar políticas de enfrentamento à discriminação contra religiões de matriz africana.

"Nós respeitamos todas as religiões e queremos que todas as religiões sejam respeitadas. Porém nós não podemos fazer uma ação de uma religião em detrimento da outra. Acho que todas, de igual modo, têm a mesma liberdade, até para fazer preleções a favor ou em detrimento uma da outra", afirma o atual presidente da frente, o deputado Eli Borges (PL-TO).

Além da portaria e do decreto, o documento entregue pela bancada a Lira e a Guimarães contém outras 11 normas baixadas pelo governo em março, com o título "decretos com gênero".

Entre eles, estão: 1) o que instituiu o grupo de trabalho para a elaboração do Programa Nacional de Ações Afirmativas; 2) o que cria uma cota para negros no preenchimento de cargos em comissão na máquina federal; 3) o que institui o Programa Mulher Viver sem Violência; 4) e o que estabelece procedimentos para acesso à Terra Indígena Yanomami —que contém a proibição "do exercício de quaisquer atividades religiosas junto aos povos indígenas".

Eli Borges afirma haver pontos positivos e negativos em todas essas medidas, mas que elas deveriam ser tratadas pelo Congresso, não por normas editadas pelo governo sem participação do Legislativo.

"Quando se olha a lista de decretos do presidente Lula e de portarias que vêm de ministérios, nós percebemos que ele está em um esforço hercúleo para governar através de decretos e portarias, sem respeitar o Poder Legislativo. Parte desses decretos tem a política que nós discordamos dela. A política afirmativa, que tem que nascer do Parlamento", diz o deputado.

Deputados em pé (um deles com bandana na cabeça) posam para foto em uma sala, com um quadro ao fundo
Integrantes da bancada evangélica entregam ao presidente da Câmara lista de atos de Lula que consideram contrários ao segmento; da esq. para a dir., Gilberto Nascimento (PSC-SP), Fernando Máximo (União-RO), Eli Borges (PL-TO), Arthur Lira (PP-AL), Marco Feliciano (PL-SP) e Pastor Diniz (União-RR) - Divulgação

A bancada evangélica reúne mais de 100 dos 513 deputados da Câmara e, historicamente, tem se colocado como adversária dos partidos do campo da esquerda.

Em 2015, por exemplo, a bancada foi uma das principais propulsoras do chamado "kit gay", uma fake news que se espalhou na primeira gestão de Dilma Rousseff (2010-2014).

Parlamentares e grupos religiosos afirmavam na ocasião que o governo do PT estaria distribuindo material pornográfico a crianças do ensino fundamental.

Na verdade, o kit, à época sob análise do Ministério da Educação, era direcionado a professores e alunos do ensino médio e integrava o programa Escola Sem Homofobia, cujo objetivo era combater o preconceito nas escolas.

Elaborado por ONGs contratadas mediante convênio e após cobrança do Ministério Público Federal, o material incluía um caderno direcionado aos gestores, boletins destinados aos estudantes e vídeos.

Jair Bolsonaro (PL) foi um dos políticos que estimularam as notícias falsas sobre o kit, tendo se projetado nacionalmente a partir desse caso, como ele próprio afirmou em várias notícias posteriores. Em seu governo, ele contou com amplo apoio dos evangélicos.

Já o governo Lula é aprovado por 38% da população brasileira neste início de gestão, mas entre os evangélicos esse percentual cai a 28%, como mostrou a mais recente pesquisa do Datafolha.

Ministérios dizem que normas são urgentes e fundamentais

Procurados, Arthur Lira e José Guimarães não se pronunciaram.

O Ministério da Saúde afirmou considerar fundamental o debate entre os Poderes, mantendo constante diálogo com o Congresso.

"Sobre o Programa Nacional de Equidade de Gênero, Raça e Valorização das Trabalhadoras do Sistema Único de Saúde (SUS), a iniciativa trata do enfrentamento às desigualdades de gênero e raça, discriminação e preconceito de qualquer tipo de violências a trabalhadoras e trabalhadores de saúde", disse a pasta, acrescentando que as mulheres representam 74% da força de trabalho no SUS.

"As ações previstas pelo programa vão ampliar as condições necessárias à prática da equidade."

O ministério deu uma resposta inicial que, posteriormente, afirmou ter sido enviada de forma equivocada. O texto foi atualizado.

O Ministério da Igualdade Racial afirma que é preciso "apresentar uma solução para os crescentes casos de invasões a terreiros de candomblé, umbanda e outras religiões de matriz africana".

De acordo com dados enviados pela pasta, de 2015 a 2018 foram registrados 3.288 casos de racismo religioso, "sem contar que os homicídios (seis, em 2016 no Pará) e a expulsão de lideranças religiosas dos territórios de favelas e bairros periféricos não têm sido contabilizados".

"O decreto faz-se necessário nesse momento. Não impedindo então, de qualquer forma, que a matéria seja foco de discussão no Congresso Nacional a partir da sociedade. Inclusive, acreditamos que no futuro o Estado brasileiro possa aprovar um projeto de lei que promova mecanismos de combate ao racismo religioso e promoção da liberdade de crenças e religiões no Brasil."

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.