Pressão de big techs contra regulação é muito maior no Brasil, diz deputada da União Europeia

Líder de comitê que implementa lei europeia de internet afirma que resistência de plataformas a PL das Fake News é mais agressiva

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São Paulo

A deputada da União Europeia Anna Cavazzini, do Partido Verde da Alemanha, esteve no Brasil na última semana e se mostrou espantada com a intensidade do lobby das plataformas de internet contra a regulação discutida por meio do PL das Fake News.

"[Na UE], as empresas não foram tão agressivas como no Brasil; elas fizeram pressão em relação a pontos específicos [da legislação], um lobby muito poderoso, são as maiores empresas do mundo e gastaram muito dinheiro. Mas elas não fizeram um lobby em oposição frontal à legislação. Aqui no Brasil foi uma loucura", diz Cavazzini.

A deputada participou ativamente da negociação da nova regulação de internet no bloco europeu —a Lei de Serviços Digitais (DAS, na sigla em inglês), como líder do Comitê de Mercado Interno e Proteção do Consumidor. Vice-líder da delegação das relações da União Europeia com o Brasil, ela se reuniu em Brasília com o deputado Orlando Silva (PC do B-SP), relator do PL 2630, inspirado, em parte na regulação europeia.

Anna Cavazzini, deputada da União Europeia, fala em plenário
Anna Cavazzini, deputada da União Europeia - Jean Christophe Verhaegen/União Europeia/Divulgação

Cavazzini acompanha de perto a implementação da legislação na UE, que entrou em vigor em fevereiro deste ano.

O primeiro passo foi anunciar as plataformas de internet que receberiam a designação de Plataformas Online Muito Grandes (VLOPs), aquelas que têm mais de 45 milhões de usuários mensais ativos, e que estarão sujeitas às regras mais rigorosas. São empresas como Google, Facebook, Instagram, TikTok, YouTube e Twitter, mas também Amazon, AliBaba, LinkedIn e Booking.com. Até agosto, essas plataformas terão de cumprir muitas das obrigações previstas no DSA.

O Congresso brasileiro está discutindo um projeto de lei inspirado, em parte, no Ato de Serviços Digitais (DSA) da UE. A senhora esteve em Brasília conversando com legisladores e autoridades. Qual é a sua impressão? Na UE, estamos um passo à frente e temos experiência que podemos compartilhar. A lei ainda não foi totalmente implementada, então não sabemos exatamente como irá funcionar. Mas nós passamos por um processo de dois anos de negociação e debate público, vimos o que funcionou e o que poderíamos ter feito diferente.

Conversando com o deputado Orlando Silva, pude ver que há debates semelhantes no Brasil, sobre liberdade de expressão, ainda que sejam mais fortes no Brasil. E as plataformas também fizeram lobby para influenciar a lei na UE, mas no Brasil foi muito mais intenso, o que achei insano.

Qual é a sua avaliação sobre a implementação da DSA na UE até agora? O comitê que eu lidero, o Comitê de Mercado Interno e Proteção do Consumidor, designou dois grupos de trabalho para acompanhar a implementação do DSA e do Ato dos Mercados Digitais (DMA, legislação que aborda a concentração de mercado e práticas anticompetitivas no ambiente digital).

Não criamos grupos de acompanhamento para todas as leis, mas essas duas são tão importantes que nós, parlamentares, decidimos ter uma estrutura para acompanhar como a Comissão Europeia está conduzindo a implementação. O comissário [Thierry Breton] discutiu conosco os próximos passos, os desafios. Eles reforçaram a estrutura na comissão, criaram unidades para monitorar a aplicação da lei. É uma legislação ampla, estamos avançando, mas é muito cedo para fazer uma avaliação.

Até agora, quais foram os principais obstáculos para implementação? Foi noticiado que algumas plataformas não foram transparentes em relação ao número de usuários, na tentativa de não serem designadas VLOPs. Sim, no início havia esse debate, sobre quais empresas seriam designadas VLOPs. Havia o receio de que o Twitter não fosse designado, porque eles reportaram números muito pequenos, mas eles acabaram entrando na lista. Foi um obstáculo para nós, que queríamos que a regulação atingisse o máximo possível de plataformas.

Houve resistência à legislação por parte das empresas? Sim, houve muito lobby das plataformas, mas não como no Brasil. Lá, desde o início, as plataformas entenderam que haveria uma lei. Não estavam dizendo não aprove a lei, senão tal coisa acontecerá, elas sabiam que era impossível impedir a aprovação de uma legislação. Elas fizeram lobby em relação a pontos específicos da lei, como a medida que bania anúncios microdirecionados (usando dados dos usuários).

Nós, os Verdes, acreditamos que os anúncios direcionados são um dos principais instrumentos de disseminação de ódio e desinformação. Até eu recebi anúncios microdirecionados pelo Facebook —um pai empurrando um carrinho de bebê, dizendo como o veto a microdirecionamento iria inviabilizar uma pequena empresa que fabrica artigos infantis, porque ela não mais poderia usar anúncios eficientes, direcionados.

A pressão funcionou, porque eles enfraqueceram a lei, que incluiu veto total para direcionamento para crianças, mas, para o resto dos anúncios, foi proibido apenas o uso de dados sensíveis [como orientação sexual e religião]. As empresas também fizeram campanha pesada contra algumas das exigências de transparência algorítmica que estavam na lei, e também tivemos que ceder, dando acesso apenas para pesquisadores.

No Brasil, o Google incluiu um link, na homepage de seu buscador, afirmando que o PL 2630 poderia "piorar sua internet", e enviou emails a criadores de conteúdo, dizendo que a lei iria reduzir a monetização. Na UE as empresas usaram "shadow lobbying", bancando associações e entidades que não revelavam a ligação com as empresas e pressionavam por mudanças na lei. As plataformas usaram outras táticas agressivas na UE? [Na UE], as empresas não foram tão agressivas como no Brasil; elas fizeram pressão em relação a pontos específicos [da legislação], um lobby muito poderoso, são as maiores empresas do mundo e gastaram muito dinheiro. Mas elas não fizeram um lobby em oposição frontal à legislação. Aqui no Brasil foi uma loucura.

Por que vocês avaliaram que era necessário aumentar a responsabilidade das plataformas em relação a conteúdo que viola leis? (O DSA prevê que as plataformas façam relatórios periódicos de riscos sistêmicos, detalhando como combatem linguagem de ódio, ameaças à democracia e outros conteúdos nocivos, mas não necessariamente ilegais; além disso, após notificação sobre conteúdo que potencialmente viola a lei, as empresas precisam verificar rapidamente e remover se for o caso. Também fazem relatórios sobre essas ações, que são analisados por reguladores). Nós mantivemos a ideia de que as plataformas não são responsáveis por conteúdo de terceiros como tal, porque isso destruiria o modo como funciona a internet. Mas, depois de serem notificadas sobre conteúdo potencialmente ilegal [por usuários, autoridades, qualquer um], elas precisam agir rápido e tomar providências, se for o caso.

Acho que esse é um excelente caminho, que não ameaça a liberdade de expressão e permite o funcionamento da internet. Mas, com o DSA, aumentamos as obrigações [com os relatórios e análises de risco], era necessário. Vemos em todo o mundo como as plataformas de redes sociais, sem regulação, tornam-se uma ameaça à democracia.

Desde 2000, a UE tem a diretiva de e-commerce, com o princípio de "notificação e ação" —uma vez que a plataforma foi notificada sobre um conteúdo, ela sabe da existência dele e pode ser responsabilizada, caso ele seja realmente ilegal. No Brasil, desde 2014, temos o Marco Civil da Internet —ele determina que as plataformas só podem ser responsabilizadas civilmente se não removerem um conteúdo após ordem judicial. A nova brasileira lei em discussão adota o princípio de "notificação e ação", mas as empresas e algumas ONGs têm dito que isso levará as plataformas a se autocensurar e sair removendo conteúdo demais, o chamado "chilling effect". Vocês tiveram excesso de remoções de conteúdo? De jeito nenhum. E as plataformas nunca contestaram isso de forma aberta, não foi uma questão.

O DSA também prevê que as empresas precisam agir sobre conteúdo que represente risco sistêmico, que não seria necessariamente ilegal. Isso não pode ser uma ameaça à liberdade de expressão, com as empresas avaliando o que é um risco e deve ser removido? As plataformas já estão julgando, elas próprias, o conteúdo que é permitido e o que é removido. O Facebook às vezes remove fotos de pessoas nuas, mas mantém no ar ameaças de morte ao chanceler alemão, por exemplo.

Hoje, as regras de uso são formuladas e aplicadas pelas plataformas. Queremos apenas que isso seja feito dentro da esfera democrática, vamos também fazer as regras, não só as empresas. E estamos fazendo isso com a liberdade de expressão como princípio.

Na UE, a suposta ameaça à liberdade de expressão não foi um argumento tão forte contra a regulação, a não ser, talvez, na extrema direita. Aqui, a principal crítica era de que a regulação poderia acabar prejudicando pequenas e médias empresas, que as sobrecarregaria, geraria custos.

Uma outra controvérsia aqui é a necessidade de um órgão regulador para supervisionar o cumprimento da lei e aplicar sanções. Alguns acreditam que o órgão pode se tornar um Ministério da Verdade. Como funciona na UE? Na UE, a discussão foi o contrário, havia críticas de que os órgãos de supervisão não podiam ser fracos demais.

Tínhamos o exemplo da lei de privacidade (GDPR), cuja supervisão ficou a cargo de entidades nos Estados-membros. Em alguns países, como na Irlanda, onde estão baseadas muitas big tech, os órgãos são fracos. Então, no caso do DSA, cada Estado-membro precisa indicar um órgão que será o coordenador dos serviços digitais, que será responsável pela supervisão do cumprimento da lei [além disso, a Comissão Europeia analisará os relatórios de riscos sistêmicos das VLOPs, para avaliar cumprimento da lei].


Raio-X | Anna Cavazzini, 40

Eurodeputada pelo Partido Verde da Alemanha, é formada em estudos europeus pela Universidade de Chemnitz e tem mestrado em relações internacionais pela Universidade Humboldt de Berlim. É membro do Parlamento Europeu desde 2019.

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