Vamos cobrar o Estado sobre a Comissão da Verdade, diz diretor do Instituto Vladimir Herzog

Das recomendações do grupo que investigou ditadura, apenas duas foram plenamente cumpridas, segundo entidade

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Renato Brocchi
São Paulo

Rogério Sottili, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, diz que, para enfrentar a cultura de violência no Brasil, é preciso enfrentar a impunidade. Com esse objetivo, o instituto entregou à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, em 26 de abril, o relatório "Fortalecimento da Democracia: Monitoramento das Recomendações da Comissão Nacional da Verdade".

O documento, feito em parceria com a Fundação Friedrich Ebert Brasil, delineia o estágio das recomendações do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), apresentado em dezembro de 2014.

A CNV, criada para investigar crimes da ditadura militar, conseguiu confirmar 434 mortes e desaparecimentos de vítimas do regime —o que significa que o número real para o período, de 1964 a 1985, deve ser ainda maior.

Foto colorida de Rogério Sottili. Ele é um homem branco de camisa escura e óculos redondos. Acima dele, há fotos, muitas delas representando o jornalista Vladimir Herzog.
Rogério Sottili na sede do Instituto Vladimir Herzog - Zanone Fraissat/Folhapress

O relatório de 2014 traz 29 recomendações gerais, além de algumas sugestões temáticas com foco em violações de direitos humanos de grupos específicos, como indígenas e população LGBTQIA+.

As recomendações vão das mais gerais —a primeira pede pelo reconhecimento, pelas Forças Armadas, de responsabilidade "pela ocorrência de graves violações de direitos humanos" na ditadura— até às mais específicas —a "modificação do conteúdo curricular das academias militares e policiais". Na avaliação do instituto, apenas duas foram plenamente cumpridas.

No esforço de cobrar o Estado brasileiro, o Instituto Vladimir Herzog propôs ao governo a criação de uma comissão interministerial com participação da sociedade civil para que as recomendações da CNV fossem levadas a cabo.

Em entrevista à Folha, Sotilli comentou sobre a importância do relatório que entregaram no fim de abril e disse que o presidente Lula (PT) tem uma "grande oportunidade" de realizar mudanças após os ataques de 8 de janeiro e com o desgaste das Forças Armadas.

Quais foram os métodos do Instituto Vladimir Herzog para angariar toda a informação sobre o andamento das recomendações? Queríamos construir o status de cada recomendação, avaliando exatamente onde se encontrava a realização de cada uma, se teve avanço, se teve retrocessos, se continuou exatamente igual. Identificar onde parou e ir identificando os atores envolvidos, a responsabilidade dos órgãos, para que pudesse haver uma pressão sobre esses órgãos, para que [as recomendações] fossem cumpridas, entendendo que o cumprimento delas seria fundamental para aprofundar e promover a democracia no Brasil.

Há um entendimento de que o Brasil é um país violento, culturalmente violento, e um dos pontos fundamentais dessa cultura de violência está associada ao Brasil nunca ter promovido justiça e levado às últimas consequências a responsabilização judicial sobre aqueles que são responsáveis por esses atos de violência. Isso aconteceu durante a escravidão, isso aconteceu durante as ditaduras —todas as ditaduras que sofremos— e continua produzindo, pelo exemplo da impunidade, violências cotidianas.

Então, para você poder enfrentar essa cultura de violência, você precisa enfrentar a impunidade. A CNV, com as suas recomendações, aponta quais são as questões mais importantes para enfrentar e responsabilizar o Estado sobre essa violência.

O Instituto Vladimir Herzog é amicus curiae [instituição que presta apoio a um tribunal, fornecendo-lhe informações pertinentes ao caso] da ADPF [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental] 320 sobre uma reinterpretação da Lei da Anistia, para que ela não se aplique a casos de violação dos direitos humanos durante a ditadura. Como está essa questão jurídica? O ministro Dias Toffoli [relator da ação] teve uma manifestação muito forte há cinco anos, quando ele defendeu que não houve um golpe militar, mas um "movimento militar". O que é um revisionismo inaceitável, e se contrapõe totalmente à ADPF 320, às recomendações da CNV —aprovadas como política de Estado, não de governo. Então ele já tem uma opinião sobre isso. Vai ser muito difícil de ser o relator de uma ADPF que sequer entrou em discussão. A não ser que ele tenha uma capacidade imensa de se abrir para o novo e se ressignificar.

O que esperamos a partir de agora? Vamos retomar o contato com o Supremo Tribunal Federal. Vamos fazer uma manifestação por escrito primeiramente para todos os ministros, colocando novamente a par e dizendo que essa ADPF é fundamental para a democracia no Brasil, já que eles experimentaram o que é não levar às últimas consequências a responsabilização jurídica —eles sofreram isso no dia 8 de janeiro.

Como o governo Lula pode tratar da presença dos militares no governo e dessa espécie de legado do governo Bolsonaro? Na política, você não espera o inimigo se fortalecer para poder enfrentá-lo. Eu acho que o presidente Lula tem a oportunidade de dar alguns passos maiores do que deu nos outros governos em relação a isso, por tudo o que aconteceu no dia 8 de janeiro e por todo o desgaste que as Forças Armadas vêm enfrentando.

Acho que o relatório que nós apresentamos é uma mega oportunidade, porque, se a gente pegar o relatório, não tem nada de grande violência. A violência é não fazer coisas simples. Que passa pela não comemoração do golpe de 64, e até por questões mais importantes que estão inclusive sob âmbito da Justiça: a reinterpretação da Lei da Anistia, a questão da Academia Militar. É uma grande oportunidade de dar passos importantes.

E eu acho que a mais importante [das recomendações] é a desmilitarização total do Estado brasileiro. Isso é fundamental, junto com a responsabilização judicial —que depende da Justiça, não do presidente Lula.

E como o sr. vê essa desmilitarização acontecendo? Acho que Lula começou muito bem. Dos 6.000 militares que estavam atuando no Executivo, perto da metade já deve ter saído das suas funções políticas. A gente sabe que isso é um processo lento, até porque eles ocupam funções importantes hoje que, se você desfalcar isso, um sistema para.

São pequenos gestos desses —desmilitarização da inteligência ou da segurança da Presidência— que são passos importantes. [Mas Lula] perdeu a oportunidade de colocar na mão de um civil o GSI (Gabinete de Segurança Institucional).

Essas ações seriam já o suficiente para sustar essa vontade de estar no poder desses setores das Forças Armadas? Eu não acho que isso é o suficiente. Nem sei se a formação é tão fundamental assim. Claro que ela é importante. Mas, se você pega a experiência de outros países, a porta de entrada para as Forças Armadas são várias instituições; no Brasil, é só [a Academia Militar das] Agulhas Negras, que tem uma trajetória que a gente já conhece: ela afunila.

Não adianta mudar o currículo das Agulhas Negras. Vai pouco resolver. Você tem que mudar estruturas que permitem uma diversificação maior do que é hoje a porta de entrada para as Forças Armadas, que elas sejam representadas com a cara do Brasil.

Apenas duas das recomendações da CNV foram totalmente cumpridas: a introdução das audiências de custódia, e a revogação da Lei de Segurança Nacional. Teve uma outra que foi cumprida, mas teve retrocesso, que foi o Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura. Ele também foi desenhado no final do governo Lula, e é uma recomendação da ONU. E estava funcionando muito bem. O Michel Temer começa a desmontar, e o Bolsonaro acaba com isso. Quis acabar, mas, como tinha sido criado por projeto de lei, ele não conseguiu, e na Justiça [o mecanismo] conseguiu se garantir. Mas [Bolsonaro] tirou completamente as condições de trabalho.

Quais as próximas ações que o instituto vai tomar junto ao governo? Nós vamos colocar esse ano, a partir de agora, uma centralidade muito grande em relação às recomendações da CNV.

A gente quer cobrar do Estado, a gente não fez o relatório para virar letra morta. Nós vamos monitorar as ações. A gente vai se colocar à disposição da comissão interministerial, mas, se não andar, vamos fazer novos relatórios, vamos começar a preparar isso. No ano que vem, tem dez anos da CNV, e a gente gostaria que estivéssemos comemorando avanços importantes no cumprimento das recomendações.

Agora, se não tiver avanços importantes, nós vamos estar lá com a sociedade civil denunciando. Então vamos dar uma centralidade, vamos trabalhar muito nisso, vamos fazer tudo para ajudar; e vamos cobrar.

Paralelamente a isso, nós vamos trabalhar em cima de duas recomendações que nós já vínhamos acompanhando. A que é da ADPF 320, que vamos trabalhar agora buscando junto ao Supremo que ele nos solicite apoio técnico para ajudá-los, ver se esse processo pode andar ou não.

E outra recomendação muito importante, sobre a qual nós fizemos relatório paralelo, é a do sistema pericial. Nós produzimos um mega relatório, identificamos justamente os pontos fundamentais que possam criar uma perícia autônoma da Secretaria de Segurança do estado, que seja tecnicamente forte, bem equipada e bem assalariada. Para que, de fato, a perícia seja um instrumento importante de direitos humanos e de Justiça, o que hoje não é. Hoje ela é, muitas vezes, um instrumento de absolver o Estado da violência que comete.


Raio-X | Rogério Sottili, 64

É diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog. No governo federal, foi secretário especial de Direitos Humanos e secretário executivo da Secretaria-Geral e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Entre 2013 e 2015, comandou a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo. Tem mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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