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Vídeo engana ao afirmar que Justiça autorizou invasões de domicílio no Brasil

Autora de conteúdo desinforma ao distorcer decisão de 2021 do Superior Tribunal de Justiça

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São Paulo

É enganoso conteúdo de vídeo publicado no Instagram, e que viralizou em outras plataformas, no qual uma mulher afirma que o Poder Judiciário brasileiro autorizou a invasão de domicílios. No comentário, divulgado em 18 de maio deste ano, a autora, que se identifica como criadora de conteúdo digital e conservadora, afirma que a Justiça não irá mais condenar tentativas de invasão e que "a comunização, invasão preparatória da propriedade" não será mais passível de punição ou pena. Isso não é verdade.

Na realidade, como verificado pelo Projeto Comprova, a mulher desinforma ao distorcer uma decisão de outubro de 2021, da 5ª Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça). Na ocasião, os ministros julgaram um recurso do MP-TO (Ministério Público do Tocantins), que pedia a condenação de dois homens por tentativa de roubo após terem arrombado o cadeado e a fechadura de uma casa. Na primeira instância, o TJ-TO (Tribunal de Justiça do Tocantins) absolveu um dos réus por falta de provas e condenou o outro apenas por porte ilegal de arma de fogo. O STJ manteve a decisão e negou o recurso apresentado pelo MP-TO.

O argumento da acusação era de que os homens deveriam ser condenados por tentativa de roubo porque chegaram a arrombar o cadeado e a fechadura da residência, sendo flagrados por policiais militares na porta da casa da vítima e presos em seguida. O entendimento da 5ª Turma do STJ, contudo, foi de que a ação da dupla não configurou tentativa de roubo porque não houve início da execução do crime, ou seja, os dois não chegaram a iniciar o roubo de objetos da propriedade.

Conforme a decisão, que olha para o caso específico, o arrombamento do cadeado e da fechadura da casa corresponderam "a meros atos preparatórios impuníveis, por não iniciar o núcleo do verbo subtrair". Isso não significa que o mesmo entendimento será aplicado de forma geral para qualquer decisão futura, já que não há jurisprudência dominante sobre o que configura ato preparatório e em que momento ele passa a ser uma tentativa de consumar um crime.

Construção retangular de cimento onde se lê "Superior Tribunal de Justiça" em caixa alta. A construção está em um gramado, com o prédio do Tribunal ao fundo. Foto ao ar livre, com céu azul com nuvens ao fundo
Sede do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília; post desinforma ao distorcer decisão do órgão - Sede do STJ

Também não significa que a invasão de propriedade está autorizada, e em momento algum a decisão sugere tal interpretação. Especialistas ouvidos pelo Comprova refutam as afirmações contidas na peça de desinformação e explicam que, a depender do caso, os réus poderiam ser punidos por crimes residuais, como destruição de obstáculo, dano e porte ilegal de arma – como, de fato, aconteceu com um dos réus, que estava armado.

O vídeo original foi republicado por outros usuários junto com a expressão "Faz o L" e menções ao PT, sugerindo que a decisão judicial tem relação com o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o que é mentira: a decisão do Poder Judiciário não tem ligação com o Executivo e aconteceu em 2021, antes da eleição de Lula para o terceiro mandato. Ainda que tivesse ocorrido durante o mandato do petista, não haveria relação entre o julgamento do STJ e a Presidência, já que o Judiciário é um poder independente e eventuais mudanças na tipificação de crimes cabem ao Legislativo, e não ao Executivo.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Alcance

O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até o dia 24 de maio de 2023, somente no TikTok, o post somava 209,8 mil visualizações, 10,2 mil curtidas e mais de 1 mil comentários. Além disso, o post original da autora do vídeo, no Instagram, somava 53,4 mil curtidas até a mesma data.

Como verificamos

O primeiro passo foi identificar o tema sobre o qual a autora falava no vídeo. O Comprova buscou no Google pelas palavras-chave "ato preparatório" e "tentativa de roubo" e localizou publicações em sites jurídicos —como o Conjur— a respeito de uma decisão do STJ de outubro de 2021. Também foi encontrada uma publicação no próprio site do Tribunal a respeito da decisão tomada pela 5ª Turma sobre um caso ocorrido no Tocantins.

Em seguida, foi feito contato com o STJ, a fim de esclarecer os termos da decisão. Também foram entrevistados dois especialistas no assunto: Aury Lopes Jr., advogado criminalista, doutor em Direito Processual Penal e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS, e Hélio Soares Júnior, defensor público da Bahia que atua na unidade que a Defensoria do Estado mantém em Brasília para acompanhar casos que são levados aos tribunais superiores, como STJ e STF (Supremo Tribunal Federal).

O Comprova acessou ainda o conteúdo na íntegra da decisão do STJ, que inclui parte da sentença do primeiro julgamento do caso pelo Tribunal de Justiça do Tocantins, e acionou o Ministério Público do Estado a fim de obter informações sobre o andamento e o desfecho do caso.

Por fim, foram enviadas mensagens à responsável pela publicação e ao perfil que compartilhou o conteúdo cujo post viralizou.

Decisão

Por meio de nota enviada ao Comprova, o STJ ressalta que "a decisão em momento algum autoriza a invasão de domicílio" e que a peça de desinformação faz uma "distorção sensacionalista do conteúdo jurídico do julgamento".

Consultado sobre o conteúdo da decisão, o advogado criminalista Aury Lopes Jr. foi taxativo: "Que fique claro: o STJ nunca disse que está liberado entrar na sua casa, ou que está liberado quebrar o cadeado da casa dos outros".

Sobre o vídeo, acrescentou: "Isso é uma distorção, uma manipulação absurda da notícia para criar alarmismo sem nenhum fundamento. Está fazendo uma conversa de bar sobre um tema complexo que demanda conhecimento científico".

Ele explica que esta se trata de uma decisão técnica sobre um tema do direito penal debatido no meio acadêmico há décadas, em que a discussão se concentra nas circunstâncias em que se pode punir alguém por tentativa de roubo. Há divergências dentro do próprio meio jurídico. Por isso, cabe aos tribunais fazer uma avaliação caso a caso e adotar uma teoria, o que foi feito pela 5ª Turma do STJ.

"A decisão adota teoria que tem fundamentação jurídica. Há divergência, e o relator seguiu uma linha. Você pode não concordar, porque segue outra teoria, isso é normal no direito penal", completa.

Tentativa de roubo

Diferentemente do que afirma a autora do vídeo, a decisão do STJ não diz respeito à invasão de domicílio, e sim ao que configura a tentativa de roubo —mais especificamente ao momento em que o ato começa a ser considerado um crime tentado. O artigo 14 do Código Penal Brasileiro define que um crime é considerado tentado quando "iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente".

Na decisão, o relator do caso no STJ, ministro Ribeiro Dantas, aponta que o texto da lei é muito aberto e não traz "maior clareza ou precisão a respeito de algo que concretamente possa indicar quando a execução de um crime é iniciada".

Para o defensor público Hélio Soares Júnior, o tema é mesmo controverso no campo do direito penal, e há várias teorias que buscam estabelecer uma delimitação segura entre atos preparatórios e início de execução. "Há, em realidade, uma sensível e quase invisível diferença entre os atos preparatórios e o início da execução", diz o defensor público.

Segundo ele, ao tomar a decisão, a 5ª Turma do STJ adotou a teoria objetivo-formal, que entende que os atos executórios são aqueles que iniciam a execução da ação. Ou seja, para considerar que houve uma tentativa de roubo, essa teoria entende que é preciso que os acusados tenham de fato começado a roubar algo, e que a ação tenha sido interrompida por alguma circunstância alheia à vontade deles.

Esse entendimento, porém, não é pacífico. "Parte da doutrina critica essa teoria, pois o Estado só puniria o sujeito quando estivesse muito próximo da consumação", explica Hélio Soares Júnior. Em nota, o STJ disse que não há jurisprudência dominante a respeito dessa questão, mas que a 5ª Turma apontou um precedente do próprio STJ, em um julgamento da Terceira Seção: em julgamento anterior, o colegiado entendeu que "não se poderia imputar aos réus a prática de roubo circunstanciado tentado, pois em nenhum momento ocorreu o início da conduta tipificada no artigo 157 [roubo] do Código Penal".

Especialistas ouvidos pelo Comprova explicaram que, em regra, esse tipo de decisão se esgota no STJ, que é o Tribunal que discute o alcance de uma lei – ao STF cabe julgar violações à Constituição. No caso aqui tratado, segundo o MP-TO, não houve apresentação de recurso ao STF e o processo transitou em julgado no dia 26 de outubro de 2021.

Isso não significa, contudo, que todas as decisões judiciais sobre tentativa de roubo seguirão a mesma decisão. "Essa decisão não significa que em outros casos não seja considerado tentativa, e que as pessoas não possam ser punidas por crimes residuais, ou seja, por outros crimes", aponta o advogado Aury Lopes Jr. No caso analisado pelo STJ, inclusive, houve condenação de um dos réus.

Em nota, o STJ também disse que a decisão de 2021 não significa um entendimento definitivo sobre o tema. "O STJ é um tribunal de precedentes, o que significa que seus ministros tendem a seguir as posições já firmadas na Corte. No entanto, o julgamento em questão se deu em uma das Turmas de Direito Penal, sendo que há também a Sexta Turma que forma a Terceira Seção, responsável pela uniformização de teses neste ramo do Direito. Assim, não é seguro afirmar que se trate um entendimento definitivo".

Arrombamento

É, sim, e se enquadra como crime de dano, previsto no artigo 163 do Código Penal. Além de enganar sobre o teor da decisão do STJ, a autora do vídeo ainda sugere que pessoas que tentarem invadir uma residência sairiam totalmente impunes, o que não é verdade. O defensor público Hélio Soares Júnior explica que as ações consideradas como atos preparatórios só costumam ser punidas quando se configuram um tipo penal autônomo. No entanto, mesmo que o ato preparatório não seja considerado uma tentativa de roubo, os réus podem sim ser condenados pelos chamados crimes residuais.

O professor Aury Lopes Jr. cita que, após arrombar o cadeado, os reús poderiam vir a ser punidos, por exemplo, por "destruição de obstáculo, dano ou por porte ilegal de arma". De fato, um dos réus no caso, que estava armado, foi condenado por isso – ele foi enquadrado no artigo 14 da lei 10.826, que dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição. A pena é de reclusão de dois a quatro anos e multa.

O que explica, então, que o Ministério Público não tenha pedido a condenação dos dois por crime de dano? Hélio Soares Júnior afirma que, diferentemente do porte ilegal de arma, do roubo e da tentiva de roubo, o dano é considerado um tipo de crime de ação penal privada, ou seja, o pedido de condenação não caberia ao Ministério Público, mas ao dono da residência, que acionaria um advogado. De acordo com o Código Penal brasileiro, a pena para o crime de dano varia de um a seis meses de detenção, ou multa, podendo chegar a três anos, se o crime for de dano qualificado – com emprego de violência.

Legítima defesa

A autora do vídeo ainda engana sobre o direito de legítima defesa do dono de uma residência invadida. Ao usar o caso julgado em 2021 pelo STJ, ela afirma que o dono de uma casa invadida estaria cometendo um crime, caso reagisse à invasão, uma vez que "o meliante não é um criminoso", mas isso não é verdade. A legislação brasileira assegura ao dono do imóvel o direito de legítima defesa, desde que o ato seja proporcional à agressão, como define o artigo 25 do Código Penal.

"A decisão [do STJ] nunca disse isso. Se alguém tentar invadir uma casa, e a pessoa reagir, desde que ela esteja se defendendo de uma maneira adequada, proporcional, é legítima defesa", observa o advogado Aury Lopes Jr. Ele atenta, contudo, que há limites para a legítima defesa. "Você tem que reagir a uma agressão atual ou iminente, usando moderadamente dos meios necessários. Então, se estiverem invadindo a tua casa e você realmente se defender, a tua conduta está protegida e você não comete crime algum", afirma.

O defensor público Hélio Soares Júnior exemplifica: "Se [os acusados] tivessem entrado armados na residência, o morador estaria vivendo numa situação de agressão iminente que daria ensejo à legítima defesa. O morador poderia usar os meios necessários para repelir a injusta agressão", explica.

Já Aury Lopes Jr. fala de uma situação hipotética que, diferentemente da anterior, não se enquadraria em legítima defesa, poderia ser considerada um excesso, o que faria com que o dono da casa respondesse por seus atos. "Por exemplo, você tem alguém encostado na tua porta, e você, por medo, resolve atirar e matar alguém que está encostado na tua porta, você pode ter problemas, porque isso é um excesso, não é uma legítima defesa real, a pessoa não está te agredindo, não está fazendo nada", explica.

O que diz o responsável pela publicação

A reportagem entrou em contato com a autora do vídeo, identificada como Eliane Benatti (@ebenatti), através do Instagram e com o perfil que compartilhou o conteúdo no TikTok.

A responsável pela gravação respondeu: "Prove que estou errada. Gostaria de se manifestar a respeito?" O Comprova, então, elencou as informações obtidas junto ao próprio Tribunal e a especialistas. Ela agradeceu, mas não informou se iria se retratar ou excluir a publicação enganosa.

Não houve retorno por parte do perfil procurado via TikTok.

O que podemos aprender com esta verificação

Apesar de citar a turma específica de um tribunal para conferir credibilidade ao conteúdo, a autora do vídeo não apresenta data, fontes ou links para notícia sobre a suposta autorização de invasão a domicílios por parte do Poder Judiciário. Se isso fosse verdade, dificilmente teria sido ignorado pela imprensa.

Ao se deparar com um conteúdo como esse, desconfie. Busque saber qual a data da decisão e o que exatamente ela estabelece. É comum que produtores de desinformação usem decisões ou fatos antigos como atuais para associá-los com o atual governo, por exemplo, ou façam interpretações equivocadas e simplistas de temas técnicos e complexos.

Pesquise por palavras-chave em buscadores e se informe por meio de veículos de comunicação profissionais sobre a pauta abordada. Neste caso, uma alternativa seria buscar informações divulgadas pelo próprio site do Tribunal, onde está disponível a decisão na íntegra para leitura.

Por que investigamos

O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984. Sugestões e dúvidas relacionadas a conteúdos duvidosos também podem ser enviadas para a Folha pelo WhatsApp 11 99486-0293.

Outras checagens sobre o tema

O mesmo conteúdo foi checado pela agência Aos Fatos.

O Comprova já checou outros conteúdos em que decisões do judiciário foram distorcidas ou atribuídas ao Poder Executivo e vice-versa. Já mostrou que um post enganava ao atribuir à esquerda decisões que cabiam ao Judiciário e ao Congresso Nacional, que era enganosa uma publicação que dizia que o governo havia liberado R$ 12 milhões para tratamento de uma crianças e que um post enganava ao sugerir que o STF não quis agir contra João Doria sobre doses interditadas da Coronavac, quando, na verdade, isso não era atribuição da Corte.

A investigação desse conteúdo foi feita por Estadão e Grupo Sinos publicada em 25 de maio pelo Projeto Comprova, coalizão que reúne 41 veículos na checagem de conteúdos virais. Foi verificada por Folha, Plural, NSC e A Gazeta.

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