Descrição de chapéu Junho, 13-23

Lula e Bolsonaro ficaram apagados em 2013, mas tiveram destinos selados por Jornadas de Junho

Atual e ex-presidente tiveram atuação tímida na época dos protestos e se tornaram principais antagonistas da política anos depois

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São Paulo

Entre as muitas ironias das Jornadas de Junho de 2013, uma envolve os dois principais antagonistas da política brasileira na atualidade.

Tanto o presidente Lula (PT) como o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tiveram suas trajetórias afetadas pelos protestos. Por outro lado, isso aconteceu apesar da atuação apagada dos dois durante aquele mês turbulento da história do país.

Bolsonaro e Lula de cabelo curto e bigode
Bolsonaro em Lula em 2013; sem barba, petista havia se recuperado de câncer no ano anterior - Fotos Alan Marques - 17.dez.13 e 12.dez.13/Folhapress

Em 2013, Bolsonaro ainda era um deputado pouco expressivo, que se destacava apenas por suas posições extremadas e homofóbicas —como em sua atuação no caso do chamado kit gay, em 2010.

Em junho, quando protestos contra o aumento da tarifa de ônibus já provocavam confrontos com policiais, ele foi à tribuna da Câmara para reclamar de coluna no jornal O Globo que o chamou de troglodita por algo que o então deputado descreveu basicamente como uma briga de vizinhos —no caso, dele com o Hotel Sheraton, no Rio, por causa de geradores.

"De seis meses para cá, resolvi radicalizar: toda vez que passo em frente ao hotel, solto um monte de rojões entre as duas pilastras, para acordar aquele povo mesmo", disse.

Em 19 de junho, não era mais possível ignorar os protestos. "Meu garoto, o vereador do Rio de Janeiro Carlos Bolsonaro assinou a CPI que investigará as empresas de ônibus do município, comprovando que nenhuma ligação obscura temos com os empresários, algo sempre suspeito no legislativo", postou o então parlamentar.

Em outras publicações, Bolsonaro disse ser contra a PEC 37, que limitava poderes do Ministério Público, e contra a reforma política proposta por Dilma Rousseff (PT), que ele afirmou ver como caminho para uma "ditadura do proletariado".

Ao fim do mês, o então parlamentar voltou à sua pauta mais característica, a dos costumes, com postagem contrária à proposta que, segundo ele, transformava "homossexuais em semideuses".

À época, Lula era um político incomparavelmente mais relevante que Bolsonaro.

Após deixar a Presidência três anos antes com 83% de popularidade para a sucessora, ele mencionou o tema do transporte público em 13 de junho, sem citar os protestos que já ocorriam, em um encontro internacional de autoridades de cidades de periferia em Porto Alegre.

Afirmou esperar que as cidades promovessem mais debates para buscar uma "solução" para a mobilidade urbana e para melhorar suas formas de financiamento.

Não foi o único tema da sua fala. Ainda longe de perceber a dimensão dos atos que se voltariam aos políticos, Lula defendeu a ampliação do número de ministérios no governo Dilma, sob o argumento de que as pastas precisariam de alguma especialização.

"Ou o cara vai a Brasília discutir tomate ou vai discutir peixe. Um dá na água e outro dá na terra", disse.

A página de Lula no Facebook traz, em junho de 2013, menções a programas sociais de sua gestão e à cooperação com o continente africano.

Michel Temer (MDB), que depois do impeachment ganharia a pecha de traidor entre os petistas, foi alvo de duas postagens. Uma delas reproduz encontro dos dois e declaração do emedebista, que dizia ter vindo rever alguém que se tornou seu amigo.

Em 17 de junho, quatro dias após um protesto ser reprimido com violência pela PM em São Paulo, com diversos manifestantes feridos, Lula divulga uma nota sobre os atos, afirmando que as reivindicações não são tema de polícia, mas de negociação.

"Ninguém em sã consciência pode ser contra manifestações da sociedade civil porque a democracia não é um pacto de silêncio, mas sim a sociedade em movimentação em busca de novas conquistas", diz.

"Estou seguro, se bem conheço o prefeito Fernando Haddad, que ele é um homem de negociação. Tenho certeza que, dentre os manifestantes, a maioria tem disposição de ajudar a construir uma solução para o transporte urbano."

Em outras postagens, o petista divulga links relativos à gestão de Haddad e a declarações de Dilma.

A abordagem tímida dos protestos que desafiavam aquela classe política não passa despercebida de analistas. "Cadê o Lula?" era título de coluna de Eliane Cantanhêde publicada na Folha ao final de junho.

Reportagem do jornal dizia que o petista havia reclamado com correligionários da estratégia do governo Dilma para responder à onda de protestos, em especial à ideia da convocação de uma Assembleia Constituinte.

Lula negou que tivesse feito críticas à aliada.

O papel secundário do petista nos protestos não significa que ele ficou alheio a 2013. Ele organizou reuniões em que convocou representantes da juventude para irem ao seu instituto explicarem o que estava acontecendo.

Entre as perguntas, relatam participantes, queria saber o que eles tinham contra as gestões de seu partido.

Ainda assim, as Jornadas de Junho não ocuparam papel central para o petista, a ponto de uma de suas auxiliares mais próximas, Clara Ant, mencionar os protestos de 2013 uma única vez, no meio da descrição de um período, em seu livro "Quatro Décadas com Lula" (ed. Autêntica, 2022).

Uma razão é que havia receio de Lula ofuscar Dilma, chamada por críticos como um poste seu, afirma o cientista político da FGV (Fundação Getulio Vargas) Marco Antonio Teixeira.

Já Bolsonaro não tinha relevância para se destacar à época. Teixeira ressalta ainda que a característica que os protestos ganharam, de serem antipolítica e antissistema, ajuda a explicar por que não saiu dali nenhuma liderança, o que abriu espaço para que dois personagens da política tradicional ocupassem esse lugar.

Soma-se a isso o desinteresse de integrantes do Movimento Passe Livre de ir para a arena institucional.

Mesmo sem protagonismo à época, tanto Lula como Bolsonaro tiveram destinos selados pelos protestos, avaliam analistas.

Eles veem a ascensão da pauta anticorrupção e da direita como fruto do processo que começou depois que as manifestações se expandiram.

A socióloga Esther Solano avalia que a direita tradicional (que ela considera ser representada pelo PSDB na época) inicialmente conseguiu capitalizar um sentimento de insatisfação que despertava, mas que a direita radical acabou se apropriou do anseio por um líder que se apresentasse como antissistema —ainda que fosse um representante da velha política.

Com isso, passado um tempo de 2013, a principal vítima desse processo foi a direita tradicional, avalia Solano, pois esse campo ficou sem espaço para disputar com a esquerda representada por Lula.

Tudo combinado, a maior ironia talvez seja que protestos que começaram com uma pauta mais identificada com o campo da esquerda tenham servido de chave para a ascensão de extremistas do polo oposto.

Entre as razões está o fato de a esquerda no Brasil ter virado as costas para junho, avalia o professor da USP Pablo Ortellado. Não à toa, anos depois Lula insinuaria um financiamento externo aos manifestantes de junho, do qual nunca houve evidências, com o objetivo de criar condições para derrubar Dilma.

O petista acabaria ficando 580 dias preso entre 2018 e 2019 após condenação na Lava Jato, operação cuja visibilidade e aprovação popular inicial é vista também como um dos efeitos das Jornadas de Junho.

Com mestrado sobre as Jornadas de Junho, Flávia Pellegrino, coordenadora do Pacto Pela Democracia, avalia que 2013 é mais um sintoma das transformações da sociedade e da vida política do que a causa.

"As novas direitas não nascem ali, mas é ali que elas encontram ocasião para se expressar contra o sistema político", afirma. Nesse contexto, avalia, Bolsonaro acaba sendo a pessoa que melhor personifica para esse campo o sentimento antissistema que emergiu dos protestos.

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