Descrição de chapéu Junho, 13-23

Direita perdeu vergonha após 2013, que ainda é enigma a decifrar, diz socióloga

Para Maria da Glória Gohn, junho reconfigurou cena de manifestações e mudou formas de organização

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São Paulo

A socióloga Maria da Glória Gohn, professora aposentada da Unicamp e referência nos estudos de movimentos sociais no Brasil, diz que os protestos de junho de 2013 alteraram profundamente as formas de mobilização e reconfiguraram o debate público.

"Grupos mais estruturados da esquerda viveram uma certa desarticulação e, em contrapartida, houve um avanço significativo dos grupos da direita e conservadores, que perderam, como diziam alguns, a vergonha e saíram às ruas, porque antes quase não se viam protestos desse campo", diz ela à Folha.

Manifestantes no viaduto Nove de Julho, na capital paulista, durante a comemoração da revogação do aumento das tarifas do transporte publico após a série de protestos - Moacyr Lopes Junior - 20.jun.13/Folhapress

Segundo a docente, junho legou a ascensão do ativismo —mais autônomo, com atuação em rede e valorização da vivência corporal na defesa de causas—, em contraposição ao modelo da militância —feita por movimentos e sindicatos, com estruturas mais verticais e agendas previsíveis.

O novo cenário levou à proliferação de coletivos das mais variadas temáticas, no entendimento da pesquisadora, que escrutinou o fenômeno em livros lançados na última década. "Com os coletivos, ficou estabelecida uma nova cultura política no campo da participação social."

Processo contínuo e indecifrado

Para Maria da Glória, os impactos de junho de 2013 no sistema político, social e cultural ainda estão sendo mapeados e discutidos.

"E ainda estamos sob seus efeitos, longe de serem compreendidos na sua totalidade. As manifestações impactaram a sociedade e a agenda dos governantes. Depois de uma década, são ainda um enigma a decifrar", diz.

"Há diferentes interpretações sobre junho de 2013, que vão da exaltação à condenação total", segue ela, mencionando correntes que vinculam o episódio a mobilizações explodidas no exterior desde 2008, à emergência de camadas médias conservadoras insatisfeitas e a guerras culturais internacionais.

"Nessa disputa de significados, eu me filio à corrente que viu as manifestações como um fenômeno contraditório e diferenciado conforme a região do Brasil, mas um marco importante na cena sociopolítica brasileira de protestos e manifestações públicas pelas novas formas de ação, performance, estratégias, repertórios, possibilidades de organização e uso intenso das novas tecnologias via redes sociais e blogs."

Novas formas de organização

"Aquilo mudou a cena do associativismo", resume a acadêmica. O novo ambiente "ajudou a renovar os movimentos populares e interferiu nas formas de participação política e no envolvimento do cidadão no debate".

"O quadro se modificou e passou a destacar o ativismo como central, numa participação organizada pelas vias digitais, e não a militância tradicional, com relacionamentos presenciais e planejados, como se dava na atuação em partidos ou sindicatos."

A socióloga e professora Maria da Glória Gohn, professora aposentada da Unicamp e professora visitante sênior da Universidade Federal do ABC (UFABC)
A socióloga Maria da Glória Gohn, professora aposentada da Unicamp e professora-visitante sênior da UFABC - Editora Vozes/Divulgação

Maria da Glória lembra que estruturas horizontais e com perfil autonomista, como a usada pelo MPL (Movimento Passe Livre), emergiram em 2013.

"É bem diferente esse ativismo de uma militância em que há uma hierarquia, um presidente, uma série de ações previamente planejadas para serem desenvolvidas. Esses novos ativistas defendem causas, valorizam a experiência, querem vivenciar tudo corporalmente", explica.

Proliferação de coletivos

O contexto levou à formação de coletivos, formato de organização que caiu nas graças principalmente da juventude que despertou naquele momento, em contraponto ao modelo de movimentos sociais clássicos.

"Com 2013, ficou estabelecida uma nova cultura política no campo da participação social. Muitos jovens conheceram a forma coletiva participando das manifestações de junho", analisa ela.

Os coletivos, completa, "são fáceis de criar, predominam nas universidades e deram abrigo a causas identitárias e de gênero, além de temas como ambiente, sociabilidade urbana, empreendedorismo".

Outros se estabeleceram à direita, na esteira de grupos como o MBL (Movimento Brasil Livre) e Nas Ruas.

O passo seguinte foi a migração de participantes de coletivos para a vida político-eleitoral. Maria da Glória cita os casos da Bancada Ativista, em São Paulo, e das Muitas, em Belo Horizonte, com candidaturas coletivas alinhadas a pautas identitárias. "Há vários exemplos de grupos da seara ativista que passaram a inovar na esfera pública, no campo do chamado associativismo contestatório."

Quem foi e quem ficou nas ruas

A professora ressalta a forte presença de jovens em junho. Outros segmentos se destacaram, como representantes da classe média e do "precariado", a massa de informais sem direitos sociais e trabalhistas.

Para a especialista, junho de 2013 propiciou a retomada do uso do espaço público pelas forças de direita. Já o lado oposto viveu inicialmente um recuo.

"Grupos mais estruturados da esquerda viveram uma certa desarticulação e, em contrapartida, houve um avanço significativo dos grupos da direita e conservadores, que perderam, como diziam alguns, a vergonha e saíram às ruas, porque antes quase não se viam protestos desse campo."

Maria da Glória cita articulações esparsas de anos anteriores, como manifestações da União Democrática Ruralista com a bandeira do direito à propriedade, nas décadas de 1980 e 1990, e o movimento Cansei, em 2007, uma reação ao caos no sistema aéreo, à corrupção, à violência e, indiretamente, ao governo Lula.

"Eram coisas pontuais, raras. Depois de junho de 2013, o mais frequente acabou sendo isso. Todo dia você vê essas manifestações conservadoras", acrescenta ela, em referência sobretudo ao período recente, com as mobilizações de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Violência e golpismo

A professora vê as manifestações de dez anos atrás como marco de um recrudescimento da violência, em maior ou menor grau, na luta política.

"A violência surge nas ruas, com os black blocs, e depois os atos antidemocráticos a partir de 2016 remetem à construção de uma identidade em que o antagonismo e o ódio são fatores ideológicos importantes para criar a unidade e a identidade", diz.

"O ataque ao Estado brasileiro, em 8 de janeiro, por grupos conservadores, foi uma demonstração de que a política do antagonismo e do ódio desenvolvida nos últimos anos se fez presente com força, demonstrando que o conflito social atual é muito diferente do de junho de 2013 e a léguas de distância lá dos conflitos sociais na era do participacionismo popular dos anos 1980."

Maria da Glória relativa, contudo, a conexão dos fatos que se desenrolaram na última década. "Hoje há toda uma corrente que tenta falar que, com aquele entusiasmo de 2013, não se enxergou o início de fortalecimento dos grupos antidemocráticos. Não compactuo com isso. Acho que 2013 não é um recorte isolado, é contraditório."


RAIO-X | Maria da Glória Marcondes Gohn, 76

Doutora em ciência política pela USP, fez pós-doutorado em sociologia na New School of University (Nova York) e atuou como pesquisadora na Itália, no Chile, nos EUA, na Argentina e na Espanha. É professora aposentada da Unicamp e professora visitante sênior da UFABC. Publicou mais de 20 livros sobre movimentos sociais e abordou junho de 2013 em suas obras mais recentes, como "Participação e Democracia no Brasil: Da Década de 1960 aos Impactos Pós-Junho de 2013" (Editora Vozes)

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