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Jairo Marques

Não dá para passar pano, Lula é capacitista

Está gasto argumento de que seria pior se fosse no governo Bolsonaro; dores da discriminação não se aliviam com comparativo

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São Paulo

Não foi derrapada, não foi dito "sem pensar", não foi uma licença poética, não foi desconhecimento, muito menos uma brincadeira questionável de humoristas ruins.

A fala de Lula que associa andador e muleta à vergonha e à feiura é o mais translúcido preconceito contra pessoas com deficiência, o capacitismo aberto, cuja prática é condenável pela Lei Brasileira de Inclusão.

Ao dizer, "então significa que vocês não vão me ver de andador, de muleta, vão me ver sempre bonito, como se eu não tivesse sequer operado", o presidente expõe o que circula em seus pensamentos sobre as diversidades humanas que levam pessoas a terem diferenças físicas que as fazem usar equipamentos de acessibilidades, esses, tão caros, com subsídio ridículo e chorado vindo dos governos.

Não é a primeira vez que Lula invoca o que pensa a respeito de gente malacabada em suas falas públicas, não quero imaginar as que diz e pensa em privado. É uma sequência de absurdos desmedidos diante de uma promessa de construir um mandato voltado ao diverso, às pessoas plurais, à realidade que abraça a todos.

A exortação da força, em qualquer situação, lançando mão de ocultar aquilo que possa demonstrar fraqueza, é claramente bélico, totalmente longe do humano que respeita as condições múltiplas, as várias maneiras de ser, de estar e de permanecer.

O argumento "se fosse no governo Bolsonaro seria pior" está gasto, e as dores da discriminação não se aliviam com esse comparativo e com um já longínquo desfile de posse com Lula abraçado com gente de todo tipo, sabe-se lá com que tipo de assepsia.

Pessoas com deficiência não têm cargo de poder na esfera federal, nenhuma ação inclusiva efetiva para esse público foi tomada, o protagonismo para o povo em cadeiras de rodas, em andadores, em muletas, com aparelhos auditivos e com cães-guias está limitado às redes sociais de um amigo youtuber da primeira-dama.

O presidente perde a oportunidade de sinalizar para a nação que enfrentamentos físicos, mentais, sensoriais e intelectuais forjam a identidade brasileira e do mundo e que nesta terra irá se combater o que os diminui, exclui, infantiliza, macula e fere a alma, compromete a existência.

Minha condição de cadeirante, submetido a diversas operações —essas, sim, em resistentes hospitais públicos, como os da Rede Sarah—, não me envergonha.

É sobre rodas que eu, e milhares de pessoas, com ou sem partes completas e harmônicas, tentamos transformar mentalidades, e estamos avançando, ao custo de impactos presidenciais, mas com cada vez mais apoio social de quem não tolerará a força opressiva das palavras desastrosas.

Espero que haja um arremate digno nesta história. Sempre achei fantástico e inclusivo ver Lula passando a mão com quatro dedos na cabeça de pessoas com lutas de viver tão simbólicas, duras e legítimas. Está na hora de ele reconhecer com clareza que nem todo afago foi tão honesto assim, mas que irá se renovar, se comprometer e fazer diferente pelas diferenças.

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