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Constituição chega aos 35 anos no divã e com papel do STF em disputa, aponta livro

Aprovado em 1988 como marco da transição da ditadura, texto está cercado de tensões em 2023

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São Paulo

No mesmo ano em que os edifícios dos três Poderes foram invadidos e depredados sob pedidos de um golpe militar, a atual Constituição brasileira, que marcou a transição da ditadura para a Nova República, completa 35 anos.

Há apenas dez anos, o mundo político também se viu em crise, quando confrontado pela insatisfação popular nas chamadas Jornadas de Junho de 2013, e seguiu uma trajetória que acabou desembocando na eleição de um candidato que se vendia como antissistema.

Jair Bolsonaro, ao longo do governo, se contrapôs seguidas vezes aos princípios constitucionais e e pôs em xeque o próprio sistema eleitoral pelo qual foi eleito.

Debater de que modo a Constituição chega aos dias de hoje é um dos propósitos do livro "Resiliência e Deslealdade Constitucional: Uma Década de Crise", organizado pelo professor da FGV Rubens Glezer e pela pesquisadora da FGV e professora da ESPM Ana Laura Pereira Barbosa.

Livro em que se lê Constituição segurado por duas mãos, Foto em preto e branco
O livro da Constituição de 1988 é apresentado ao plenário da Câmara por Ulysses Guimarães, deputado que presidiu a Constituinte - Lula Marques - 3.out.1988/Folhapress

Na avaliação de Glezer, a Constituição está em uma espécie de crise de meia-idade, em que vários de seus termos, como o federalismo, a relação entre o Executivo e Legislativo, e o próprio papel do STF (Supremo Tribunal Federal) estão em disputa.

Com quase duas dezenas de autores, a coletânea traz diferentes perspectivas e críticas sobre a tese de que a Constituição, ainda que tenha sofrido mudanças ao longo desse trajeto, mantém inalterada a essência do que foi pactuado em 1988.

Cunhado de "resiliência constitucional", o conceito foi publicado em 2013, em pesquisa guiada pelos professores da FGV Oscar Vilhena, Dimitri Dimoulis e Soraya Lunardi.

De modo geral, eles defendiam que a Constituição teria sido capaz de estabilizar a disputa política por ter mecanismos que permitiriam que ela sofresse emendas em relação ao pacto original, sem que para isso fosse preciso uma ruptura. Por outro lado, seu núcleo essencial estaria protegido por meio das cláusulas pétreas.

Além disso, um outro fator apontado seria a busca da Constituinte em fazer uma "maximização de interesses", de modo que os mais distintos atores se vissem contemplados e aderissem ao texto —ainda que isso significasse incluir pontos contraditórios entre si ou incorporar pautas dos militares.

Características como essas teriam permitido que a Constituição mantivesse seu núcleo duro —que inclui a democracia, a separação dos Poderes, a forma federativa da República, e o rol de direitos individuais— e seguisse aceita como a regra do jogo.

Para Glezer, é questionável se o que ainda está em vigor é de fato o que foi pactuado em 1988.

Ele destaca a atuação imprevisível do Judiciário como um dos elementos que estariam minando a lealdade à Constituição, na medida em que difundiria e ideia de que a Carta não impõe limites.

"Essa inconsistência [nas decisões], esse uso estratégico e a falta de um uso adequado do seu capital político vão gerar uma retaliação muito violenta do Congresso sobre o STF, sobre suas decisões e muito provavelmente sobre o projeto constitucional de 88."

O professor do Insper Diego Werneck, por outro lado, questiona se o que se teria hoje não seria, na verdade, não uma adesão ou lealdade dos atores políticos à Constituição propriamente, mas ao próprio Supremo.

Essa adesão viria do cálculo de que a flexibilidade e o pragmatismo da corte, ao renegociar as regras do jogo, podem vir a beneficiá-los.

"Esse é um argumento sobre um tribunal que olha para os problemas da política e que se coloca numa posição de ser um parceiro da mudança", diz. "Me parece que o sistema original de 88 não previa esse papel para o Supremo."

Além das análises sobre o STF, o próprio conteúdo da Constituição é colocado em questão no livro.

Heloísa Câmara, professora de direito da UFPR (Universidade Federal do Paraná), vê como negativa a maximização de interesses ao longo da Assembleia Constituinte, que permitiu com que não se impusessem controles adequados sobre os militares.

"O problema de tudo isso é que é como se a Constituição criasse um universo muito mais democrático, mas tivesse espaços em que não tivesse de fato democratizado", afirma.

Ela entende que é preciso colocar como pauta tanto o papel dos militares na ordem constitucional no sentido amplo, mas também repensar segurança pública, destacando a previsão das garantias da lei e da ordem.

Thiago Amparo, que é professor da FGV e colunista da Folha, considera que é preciso expandir o entendimento geral do que é visto como ameaça à democracia.

Isso porque, enquanto os acenos golpistas de Bolsonaro foram capazes de mobilizar mais vozes institucionais em seu enfrentamento, o mesmo não pode ser dito da violência que assola cotidianamente parcela relevante da população brasileira.

"É necessário que a gente entenda que a violência também é um problema constitucional", diz. "As instituições de controle da violência, principalmente da violência perpetuada pelo Estado, não foram modificadas profundamente pela Constituição de 88."

Para Oscar Vilhena, também colunista da Folha, a tese da resiliência constitucional segue válida. Ele avalia, entretanto, que se a Constituição passou por um desafio vital ao longo do governo Bolsonaro, sua sobrevivência ainda depende de sua capacidade de adaptação.

"Se a democracia não desempenha bem o seu papel, se ela não é capaz de entregar aquilo que é fundamental para o qual ela foi concebida, o risco de que ela venha a perecer é maior", diz ele, citando o filósofo político Norberto Bobbio.

Para Vilhena, é preciso reduzir as desigualdades no país e reformar o sistema político para que ele não seja capturado pela elite política.

Já a professora da UFPR Vera Karam entende que, desde sua promulgação, a Constituição vem passando por um contínuo cenário de crises.

Isso porque, a seu ver, as crises são parte do arranjo democrático, em um cenário em que crises positivas se alternam com crises negativas. Enquanto a primeira desafia a Constituição a efetivar aquilo que promete, a segunda trilharia no sentido oposto, de mitigar sua aplicação.

"Então acho que ela nunca deixou de estar no divã, só que agora chama mais a nossa atenção o tipo de narrativa que ela está produzindo", diz.

Apesar dos desafios, ela entende que a Constituição de 88 segue potente. "É com ela e não sem ela que a gente deve seguir repensando os nossos limites e as nossas possibilidades em termos de comunidade política."

Resiliência e deslealdade constitucional: uma década de crise

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