Primeira negra procuradora-geral de SP cobra pressa por equidade sem 'eu contra eles'

Inês Coimbra trabalha por diagnóstico racial e cotas na advocacia pública e vê diversidade como ativo

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São Paulo

Foram necessários quase 75 anos para que a Procuradoria-Geral de São Paulo, no maior estado do país, estivesse sob o comando de uma pessoa negra.

No topo da hierarquia da instituição na qual trabalha há 20 anos, Inês Coimbra aposta no diálogo para acelerar a transformação de um sistema branco e masculino que não condiz com a maioria da população do Brasil, autodeclarada parda ou preta e mulher.

"[A falta de diversidade ] é um problema que a gente precisa combater e não acho que o melhor caminho seja o do 'eu contra eles', que tenha que interditar os homens, que tenha que interditar os brancos. É um caminho de diálogo, informação e letramento", diz.

A procuradora-geral do estado de São Paulo, Inês Coimbra, em seu gabinete - Jardiel Carvalho/Folhapress

Esse é o movimento que ela tenta fazer, embora reconheça que o processo é mais lento do que gostaria.

Desde que assumiu a Procuradoria, órgão que tem como principal função a advocacia do estado, seu desafio tem sido dar transparência aos dados raciais da instituição, esbarrando na necessidade de um recadastramento e de formação dos servidores.

Enquanto ela prepara as regras para o primeiro concurso público da Procuradoria com cotas e busca fortalecer a coordenadoria de direitos humanos criada no último ano, Inês também tenta ampliar o debate em nível nacional.

O diagnóstico racial na advocacia pública, a ser divulgado neste mês, foi feito pelo Fórum Permanente de Equidade e Diversidade do Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal, criado a partir de uma proposta feita por Inês com o objetivo de enfrentar desigualdades.

"Talvez a gente chegue lá, mas qual é a nossa pressa? A gente pode esperar mais um século para ter equidade ou não? Se é uma questão importante, exige energia aplicada para a transformação de uma cultura. Não se muda organicamente isso", diz.

Nomeada em 2022 pelo então governador Rodrigo Garcia (PSDB) e reconduzida por Tarcísio de Freitas (Republicanos), Inês não tem partido nem pretende. Tampouco considera a defesa da equidade como uma agenda de esquerda.

"É uma pauta social, de todo mundo, de direita, esquerda, centro, meio, tanto faz. Como é possível defender algo que não seja igualdade entre gêneros, inclusão de todas as pessoas? Não vejo como uma pauta partidária, acho bastante anacrônico pensar isso sob esse olhar."

Essa consciência ainda não estava presente na adolescente mineira de Belo Horizonte que morava no Espírito Santo quando escolheu o curso de direito pelas chances de um emprego para sobreviver e influenciada pela tia, que via nela a defensora de causas e coisas.

Filha de uma mãe solo trabalhadora de creche, de origem negra e simples que se envolveu com o pai, filho de diplomata, Inês foi criada com a ajuda dos avós maternos. Tinha 13 anos quando o pai morreu e a mãe assumiu ainda mais o duplo papel para ser assim a sua "pãe".

Na época, já havia visto casos de racismo contra tios, avós e a própria mãe, mas só seria capaz de nomeá-los assim na última década, quando se apropriou de sua negritude.

"Eu não cresci com um repertório antirracista. Nunca me considerei uma pessoa branca, mas eu não tinha todo esse letramento", diz, citando a leitura de "Tornar-se Negro", de Neusa Santos Souza, como um divisor.

Na obra, a autora reflete sobre como o negro precisou se embranquecer para ascender socialmente no país.

"Essa percepção de que a gente não nasce negro, como também disse [a intelectual] Sueli Carneiro, é uma conquista cruel. Houve para mim um ganho de consciência muito amplo que abarcou episódios do passado."

Ela diz que não consegue mais "enxergar o mundo a não ser por esse viés". "Isso significa que sempre vai me chamar atenção o lugar que só tem pessoas brancas ou que só tem homens. Não é alguma coisa que eu não perceba mais."

Inês chegou a São Paulo com pouco mais de 20 anos, aconselhada por uma colega de faculdade sobre as oportunidades na cidade. Concluiu a primeira especialização na PUC-SP em processo cível com auxílio de uma bolsa, prestou concurso para a Procuradoria e se encontrou nos estudos sobre direito público.

"É uma área que pode ajudar em transformações sociais importantes. Pensar o direito público é pensar um pouco de sociologia, ciências políticas e gestão pública."

Começou como atendente na Defensoria Pública, até então parte da Procuradoria do estado. Na Vara da Infância e Juventude se deparou com mulheres que recorreram ao Estado buscando políticas públicas por se verem sozinhas na criação dos filhos.

Anos mais tarde, já no trabalho de consultoria às secretarias do governo pela Procuradoria, ela conta ter reencontrado questões de mulheres ao participar de projetos como a remoção de famílias de áreas desapropriadas para a construção do Hospital da Mulher, que substituiu o Hospital Pérola Byington.

"A gente tentou fazer da forma mais delicada e cuidadosa possível, e acho que a minha experiência de Defensoria anterior me ajudou muito nisso. É um processo que exige diálogo e empatia. Não se faz isso com truculência", afirma.

O período mais difícil da carreira veio na pandemia, quando integrou o comitê gestor de crise do governo do estado, responsável por decidir de um dia para o outro sobre temas como fechamento do comércio, contratação de caminhões frigoríficos para colocar corpos, uso de cilindros de oxigênio de mergulho em hospitais e regras para necropsias.

"Lembro de chegar em casa no dia em que em uma das reuniões se começou a ter preocupação a respeito dos anestésicos [para intubação]. Liguei para uma amiga e chorei. Eram temas muito complicados, mas acho que o serviço público e o estado de São Paulo, especialmente considerando as circunstâncias, se desincumbiram bem da tarefa", diz.

Enfrentando agora processos sobre privatizações, Inês afirma que o impacto para a população mais carente tem sido uma premissa nos estudos feitos pelo órgão.

Para ela, a diversidade é um ativo para aumentar a eficiência das decisões em uma sociedade complexa.

"Há experiências que são muito difíceis de serem compreendidas se não foram vivenciadas. Quando a gente está falando de sistema de Justiça e de estruturas que existem para lidar com conflitos sociais, quanto mais experiências, mais capazes de fazer propostas eficientes de dirimir esses conflitos."

Mãe de um filho de 14 e uma filha de 12, ela conta com a rede de apoio para educá-los e conciliar as funções na instituição e como professora de direito administrativo, tarefa que desempenhou até assumir o cargo atual.

Inês diz nunca ter deixado nada de lado por ser mulher, apesar de ter enfrentado fora da instituição o assédio e experiências que nenhum homem teria e sobre as quais prefere não falar.

Apesar disso, ela olha o futuro com a esperança de uma onda de mudanças. "Quero crer que a gente está fazendo um caminho de conquista, indo para a frente. Talvez não na velocidade desejada, mas estamos indo."


RAIO-X | Inês Coimbra, 46

É a primeira pessoa negra e quinta mulher à frente da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, onde trabalha há 20 anos. Mestre em direito do Estado pela PUC-SP e especialista em direito processual civil e direito administrativo pela mesma instituição, fez graduação em direito pela União das Escolas de Ensino Superior Capixaba (1999)

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