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Delação sobre assassinato de Marielle e de Mauro Cid expõe lacunas na legislação

Formato de acordo foi aperfeiçoado desde a implementação, mas ainda gera espaço para dúvidas

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São Paulo

O instituto da delação premiada foi aperfeiçoado desde a sua implementação em 2013, mas ainda tem lacunas expostas em casos recentes, como o de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL) investigado por uma série de crimes pela Polícia Federal, e o do ex-policial militar Ronnie Lessa, assassino confesso da vereadora Marielle Franco (PSOL).

Entre as dúvidas que suscitam debate entre especialistas estão a quantidade de provas necessárias para, somadas ao depoimento do delator, ensejar uma prisão preventiva; as implicações de uma rescisão da delação; os benefícios oferecidos em negociação; a separação precisa das etapas de negociação; e os casos de divergências entre diferentes autoridades envolvidas nos acordos.

O tenente-coronel Mauro Cid chega à Polícia, em setembro de 2023, para colocar tornozeleira eletrônica
O tenente-coronel Mauro Cid chega à Polícia, em setembro de 2023, para colocar tornozeleira eletrônica - Pedro Ladeira - 9.set.23/Folhapress

No Brasil, as delações precisam de provas de corroboração para subsidiarem medidas cautelares como a prisão preventiva. A exigência aparece expressa no pacote anticrime de 2019, que trouxe uma série de medidas para aperfeiçoar o instituto.

Como a Folha mostrou, um relatório da Polícia Federal usado para prender os suspeitos de terem mandado matar Marielle expôs dificuldades de provas para confirmar a delação.

"Pessoas foram presas preventivamente oriundas de uma colaboração premiada [no caso Lessa]. O que se espera é que o Judiciário tenha, ainda que minimamente, analisado a existência de provas de corroboração apresentadas pelo colaborador", afirma Luísa Walter da Rosa, mestre em direito do Estado pela UFPR (Universidade Federal do Paraná) e autora de livros sobre acordos penais e colaboração premiada.

No caso de Mauro Cid, uma dúvida levantada e ainda em aberto é sobre os efeitos de uma possível rescisão da delação, aventada após vazamento de áudios do tenente-coronel com críticas à condução da investigação pela PF e ao ministro Alexandre de Moraes, do STF. Segundo Luísa, ainda não é claro quais são as consequências de se rescindir um contrato.

"Isso é importante porque afeta o que vai poder ser feito com os elementos que foram produzidos na colaboração premiada. A depender da maneira como o acordo é extinto, o Estado pode usar ou não as provas que foram entregues pelo colaborador", afirma.

A especialista cita ainda como lacunas o enrijecimento excessivo da margem de benefícios que se pode negociar com o delator e a insegurança a respeito do que deve acontecer quando a polícia e Ministério Público discordam sobre se vale a pena firmar uma colaboração.

Para Maurício Zanoide, professor de processo penal da USP, o fato de o Brasil não ter uma cultura sólida em acordos penais explica algumas das brechas ainda persistentes na lei.

Ele entende ser necessária a separação das equipes da polícia ou do Ministério Público que negociam a colaboração e aquelas que fazem as investigações, o que não é a praxe. "É preciso haver o isolamento das ambiências negocial e investigatória, já que elas requerem equipes treinadas em aspectos diferentes", afirma.

Outra brecha seria a ausência de uma separação precisa das etapas de negociação, o que pode acarretar problemas como a pressão inadequada por parte de autoridades sobre o colaborador. "Não há uma definição clara sobre qual é o momento exato em que se deve finalizar a fase de coleta de informação e definir quando o acordo vai ser firmado", afirma.

Segundo o professor da Faculdade de Direito da USP e advogado criminalista Mauricio Dieter, a principal lacuna das delações é a ausência de métricas sobre as consequências em caso de descumprimento do acordo de colaboração por alguma das partes.

Ele argumenta que a lei ainda deixa muita margem de subjetividade e defende um acompanhamento mais preciso do juiz que homologa o acordo. "O instituto da delação é de uma catastrófica insegurança jurídica."

Estabelecido na lei das organizações criminosas (lei 12.850/2013), o instituto teve caráter pioneiro, mas enfrentou desconfiança após excessos cometidos na Operação Lava Jato. Depois do case jurídico, mudanças na legislação aperfeiçoaram a delação.

As principais delas, citadas por especialistas, constam na lei anticrime (13.964/2019), que garantiu que colaborações precisam ser corroboradas por provas e não podem ensejar medidas cautelares ou o oferecimento de denúncia com base apenas na fala do delator.

As lacunas, afirma Luísa Walter da Rosa, apontam para a necessidade do contínuo aperfeiçoamento da legislação, não para a extinção do instituto.

"A colaboração premiada é um divisor de águas do processo penal e um instrumento extremamente necessário para o desmantelamento de organizações criminosas", diz.

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