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Uso do TSE por Moraes mirou Eduardo Bolsonaro e série de aliados de ex-presidente

OUTRO LADO: Ministro afirma que todos os procedimentos 'foram oficiais, regulares e estão devidamente documentados'

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Fabio Serapião Glenn Greenwald
Brasília

O gabinete de Alexandre de Moraes no STF (Supremo Tribunal Federal) utilizou a estrutura do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) para produzir relatórios contra ao menos 20 bolsonaristas, em um período em que o discurso golpista avançava entre aliados de Jair Bolsonaro (PL).

As mensagens trocadas entre o juiz Airton Vieira, principal assessor de Moraes no STF, e Eduardo Tagliaferro, chefe do setor de combate à desinformação do TSE, às quais a Folha teve acesso, tratam de casos relacionados a apoiadores de Bolsonaro e parlamentares aliados dele.

O material obtido pela Folha abrange mensagens trocadas de agosto de 2022, no período eleitoral, a maio de 2023 —em 8 de janeiro de 2023, bolsonaristas promoveram a invasão e depredação da sede dos três Poderes, em Brasília.

O ex-chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE, Eduardo Tagliaferro (de terno), e Airton Vieira, juiz instrutor de Alexandre de Moraes no STF
O ex-chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE, Eduardo Tagliaferro (de terno), e Airton Vieira, juiz instrutor de Alexandre de Moraes no STF - Reprodução

As mensagens e documentos têm origem em fontes com acesso legal a dados de um telefone que contém as mensagens, não decorrendo de interceptação ilegal ou acesso hacker.

Moraes disse em nota nesta terça (13) que todos os procedimentos foram "oficiais, regulares e estão devidamente documentados nos inquéritos e investigações em curso no STF, com integral participação da Procuradoria-Geral da República".

"Diversas determinações, requisições e solicitações foram feitas a inúmeros órgãos, inclusive ao Tribunal Superior Eleitoral, que, no exercício do poder de polícia, tem competência para a realização de relatórios."

Tagliaferro afirmou que não se manifestará, mas que "cumpria todas as ordens que me eram dadas e não me recordo de ter cometido qualquer ilegalidade".

Como mostrou a Folha, o gabinete de Moraes no STF solicitava de maneira informal a produção de relatórios por Tagliaferro, lotado no TSE. Esses documentos, em alguns casos, depois eram usados pelo ministro para embasar medidas criminais dentro do inquérito das fake news, no Supremo, como se tivessem sido enviados de forma espontânea pela corte eleitoral.

As mensagens revelam que, após Airton Vieira repassar os pedidos pelo WhatsApp, Tagliaferro fazia os monitoramentos, produzia os relatórios e enviava por email como se eles tivessem sido produzidos por iniciativa da AEED (Assessoria Especiais de Enfrentamento à Desinformação).

As informações eram encaminhadas para o inquérito 4.781, conhecido como o das fake news, e embasaram ordens de quebras de sigilo bancários, bloqueio de redes e suspensão de passaporte expedidas pelo gabinete do ministro.

O próprio juiz instrutor de Moraes demonstrou, em áudio revelado pela Folha, preocupação com a forma de atuação dos gabinetes do ministro no STF e no TSE.

Em 6 de outubro de 2022, por exemplo, Airton Vieira mandou uma mensagem com um pedido de monitoramento feito diretamente por Moraes.

"Boa noite, Eduardo! Tudo bem?! O Ministro pediu para verificar, o mais rápido possível, as redes sociais dos Deputados bolsonaristas (os nomes envio abaixo), ver se estão ofendendo Ministros do STF, TSE, divulgando ‘fake news’, etc., para fins de multa. Ele tem bastante pressa…Obrigado."

A lista enviada na mensagem seguinte elenca os seguintes nomes: Bia Kicis, Carla Zambelli, Eduardo Bolsonaro, Major Vitor Hugo, Marco Feliciano, Junio Amaral, Filipe Barros (todos do PL), Otoni de Paula (MDB) e Daniel Silveira (então no PTB).

Tagliaferro diz, "pode deixar", e na manhã do dia seguinte recebe outra mensagem do juiz instrutor sobre o pedido contra os parlamentares.

"Bom dia! Tudo bem?! 1- deputados bolsonaristas: preciso com as datas das postagens e em forma de relatório. 2- por favor, a pedido também do Ministro: identificar o iluminado do vídeo abaixo, por favor. Obrigado."

O vídeo citado falava em fraude no primeiro turno das eleições, que havia transcorrido no final de semana anterior, com base em uma teoria conspiratória sobre um "algoritmo predefinido" na urna para fazer os votos de Bolsonaro caírem e os de Lula aumentarem ao longo da apuração.

Esse tipo de alegação, jamais comprovada e sem nenhum indicativo de prova, foi amplamente difundida nos círculos bolsonaristas durante a campanha de 2022.

Três dias após o pedido, Tagliaferro envia o relatório de 66 páginas com prints e informações sobre postagens dos deputados em suas redes sociais. Com exceção de Marco Feliciano, Otoni de Paula, Felipe Barros e Eduardo Bolsonaro que, segundo o documento, não tinham postado no período.

Não é possível saber com base no material de qual forma o gabinete de Moraes no STF utilizou o relatório enviado por Tagliaferro.

Entre outras informações, o relatório reproduz postagens feitas por Zambelli, Kicis e Junio Amaral de uma fake news que mostraria detentos do presídio de Pinheiros, em São Paulo, comemorando a eleição de Lula.

Ainda sobre Eduardo Bolsonaro, conversas de novembro de 2022 entre Marco Antônio Vargas e Tagliaferro mostram o pedido para relacionar o filho de Bolsonaro com o argentino Fernando Cerimedo.

Cerimedo entrou à época na mira de Moraes por replicar em suas lives a desinformação de que a eleição havia sido fraudada porque cinco modelos de urnas em que Lula (PT) recebeu mais votos não teriam sido submetidos aos testes de segurança.

Ainda entre o primeiro e segundo turno das eleições de 2022, os pedidos de Moraes intermediados por Airton Vieira, em alguns casos, tiveram como origem reportagens publicadas pela imprensa.

"Bom dia! Tudo bem?! Consegue checar, por favor, se o Allan dos Santos abriu alguma outra conta no Instagram?", diz o juiz a Tagliaferro às 8h44 do dia 19 de outubro de 2022, por meio do WhatsApp.

Alguns minutos depois, às 9h03, o juiz instrutor de Moraes manda uma notícia do portal Metrópoles apontada pelo sistema de clipping interno contratado pelo STF para monitorar citações à corte e aos ministros no noticiário.

"Proibido pelo STF, Allan dos Santos abre sua 16ª conta no Instagram", dizia o título da reportagem.

Depois de conversarem um pouco sobre o pedido, e o assessor do TSE indicar a existência de várias páginas em nome do blogueiro bolsonarista, o juiz instrutor de Moraes afirma: "Por favor. Relacione todos e me envie. Vamos mandar bloquear todos eles. Obrigado."

As mensagens e documento não mostram quais as medidas tomadas por Moraes contra o blogueiro.

Allan dos Santos, que propaga teses fantasiosas sobre fraude não só nas eleições do Brasil, mas nas dos Estados Unidos, tem suas contas em redes sociais banidas pelo STF desde 2021 e é foragido da Justiça brasileira. No exterior, ele burlou por diversas vezes a decisão abrindo novas contas.

Os pedidos também eram feitos quando o próprio Moraes era atacado nas redes. No dia do segundo turno, em 30 de outubro, o empresário catarinense Newton Crespi xingou Moraes em um vídeo publicado no Instagram após a derrota de Bolsonaro para Lula.

Na postagem, o empresário chama Moraes de vagabundo e cobra de Bolsonaro um golpe de Estado.

Eduardo Tagliaferro, então chefe da AEED (Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação) do TSE, e o ministro Alexandre de Moraes
Eduardo Tagliaferro, então chefe da AEED (Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação) do TSE, e o ministro Alexandre de Moraes - Reprodução

O Metrópoles noticiou o fato no dia seguinte, às 17h37. Pouco tempo depois, às 18h19, Airton Vieira fez um pedido urgente a Tagliaferro. "Boa tarde! Tudo bem, Eduardo?! Para anteontem, consegue um relatório simples, para que eu possa fazer o que o Ministro pediu agora? Obrigado."

As mensagens também mostram que o ex-deputado Roberto Jefferson foi alvo de pedido de relatório pelo gabinete de Moraes enquanto aumentava seus ataques golpistas contra as urnas e autoridades.

Político de extrema direita, Jefferson protagonizou um dos momentos mais tensos da campanha, uma semana antes do segundo turno. Ele disparou mais de 20 tiros de fuzil e lançou duas granadas contra policiais federais que foram à sua casa cumprir uma ordem de prisão expedida por Moraes.

As conversas mostram que relatórios produzidos no TSE a pedido do gabinete de Moraes no STF também foram usados no caso do ex-parlamentar.

No material ao qual a reportagem teve acesso, a primeira citação ao ex-deputado por Tagliaferro e Airton Vieira ocorreu na manhã de 6 de outubro de 2022. Ela dizia respeito ao áudio em que Jefferson retomava os ataques a Moraes e defendia claramente uma ruptura institucional.

"Não vai haver 2º turno, nós temos que impedir isso. Chega do Bolsonaro ficar com essa conversa de quatro linhas. Quatro linhas já acabou. Esse Alexandre de Moraes fraudou as eleições", disse.

Às 10h15 daquele dia, Airton Vieira encaminhou uma mensagem para Tagliaferro. "Bom dia! Tudo bem?! Consegue o áudio recente do Roberto Jefferson, no qual ele ofendeu o Ministro e disse que as eleições foram fraudadas? Obrigado".

Em seguida, encaminhou um link de uma reportagem sobre o tema e recebeu uma resposta do assessor do TSE: "Estou atrás". Dias depois, o juiz instrutor do STF cobra o relatório sobre o áudio de Jefferson.

Enquanto o assessor do TSE monitorava as redes a pedido do juiz instrutor de Moraes no STF, Jefferson escalava ainda mais os ataques, posteriormente difundidos nas redes de sua filha, Cristiane Brasil (então no PTB).

No dia 14 de outubro, o ex-deputado chamou Moraes em um vídeo de "cabo eleitoral do Lula". Cinco dias depois, Cristiane divulgou outro ataque em que ele criticava Moraes por ter "censurado" sua entrevista à rede Jovem Pan. "Xandão, você foi longe demais, Xandão. Xandão, você vai cair do cavalo, Xandão", disse.

No dia 21 de outubro, Moraes decretou a prisão de Jefferson após um novo descumprimento das medidas cautelares. Na ocasião, o ex-deputado atacou a ministra Cármen Lúcia, do STF, em um vídeo publicado por Cristiane Brasil nas redes sociais.

No dia seguinte, Tagilaferro e Airton Vieram entabularam uma intensa conversa entre 18h45 e 21h30 em que o juiz instrutor de Moraes pede o relatório sobre as redes de Cristiane Brasil, além dos vídeos com os ataques de Jefferson.

"Você tem o vídeo do RJ xingando a Ministra Cármen Lúcia?", pede o juiz às 18h45. "Já estou montando o relatório", responde o assessor do TSE, que em seguida manda o link do video no Youtube.

O link é o mesmo citado por Moraes na decisão do dia em que decreta a prisão e ordena busca e apreensão contra Jefferson.

Às 21h25, o assessor do TSE envia o relatório sobre Cristiane Brasil e recebe um pedido do juiz instrutor. "Se puder enviar via e-mail também, relatório e ofício, agradeço. Pode enviar o para o meu e-mail."

Embasada com informações reunidas por Tagliaferro sob ordens de Airton Vieira, a Polícia Federal foi na manhã do dia seguinte, um domingo, até a casa na cidade de Comendador Levy Gasparian (RJ) onde Jefferson morava.

O ex-deputado reagiu à bala e, além dos mais de 20 tiros de fuzil, também lançou granadas na direção dos agentes. Dois policiais ficaram feridos, atingidos por estilhaços. A ação começou pela manhã e se estendeu até o fim da tarde, quando o ex-deputado se entregou e foi preso.

Naquele dia, até a concretização da prisão, Tagliaferro e Airton Vieira pouco conversaram. Os dois voltaram a trocar mensagens após a prisão de Jefferson, às 18h38. A conversa, a partir de então, se dá em tom mais ameno.

"Em 31 anos de carreira, embora aqui eu não esteja no exercício do meu cargo, mas nunca passou pela minhas mãos um caso onde o cidadão tivesse feito a polícia por tanto tempo de, não de boba, não é o caso, mas enfim, deixado a policia esperando, enfim, nessa situação, com granada, com tiro, com dois policiais feridos, etc", diz Airton.

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