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Decreto ameaça integração de estudantes com deficiências

Determinação do governo atrapalha meta de universalizar acesso à rede regular de ensino até 2024

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Rio de Janeiro

Um decreto assinado em 2020 pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) pode ser um obstáculo extra para que o Brasil atinja, até 2024, a meta de universalizar o acesso à educação básica de pessoas com deficiência na rede regular de ensino.

O decreto é o 10.502, intitulado Política Nacional de Educação Especial, suspenso desde dezembro passado pelo Supremo Tribunal Federal, que ainda vai analisar o mérito de uma ação para barrá-lo.

Essa nova determinação do governo imputa a uma equipe multidisciplinar da escola o dever de orientar a família do aluno com deficiência sobre a opção de encaminhá-lo a uma classe ou instituição especial —apartado dos demais.

Ilustração em tom azulado retrata pessoas com deficiência em um espaço cultural; uma mulher com vestido vermelho está de pé, ela tem uma perna mecânica; ao lado, há uma pessoa cadeirante e, mais atrás, outra usando muletas; eles estão observando pessoas que fazem pinturas em telas apoiadas em cavaletes
Catarina Pignato

Embora a decisão final seja do aluno ou responsável, especialistas afirmam que isso deve tirar a autonomia dos pais e desestimular a matrícula em escolas regulares.

"Se uma equipe diz para um pai que a escola não é adequada para o filho dele, ele vai manter a criança lá? Nunca", ilustra o advogado Cahuê Alonso Talarico, que participou da elaboração da ADI (ação direta de inconstitucionalidade) 6.590, movida pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro) e apresentada ao STF para tentar derrubar o decreto.

Segundo Talarico, a política viola a lei 7.853, de 1989, que garante a matrícula e a inclusão de PCDs (pessoas com deficiência) em estabelecimentos públicos e particulares.

Para Luiza Russo, diretora do Instituto Paradigma, que promove o desenvolvimento de PCDs, a mudança prejudica o cumprimento das metas da lei 13.005/2014 do Plano Nacional de Educação, segundo a qual todas as crianças e todos os adolescentes com deficiência, dos 4 aos 17 anos, devem, até 2024, ter acesso à educação e ao atendimento especializado, preferencialmente na rede regular de ensino.

A nova orientação, diz Russo, enfraqueceria ações de inclusão de municípios e estados. "Com esse decreto, gestores que já não estavam muito empenhados no cumprimento dessas metas enxergam um pretexto para não segui-las."

A norma de 2014 adota como estratégia a implementação de salas de recursos nas escolas e o fomento da formação de professores do ensino regular para que realizem atendimento especializado.

Há cerca de 1,3 milhão de alunos com alguma deficiência na educação básica (classes comuns + classes especiais e escolas especializadas).

Dados do Anuário Brasileiro da Educação Básica de 2021 mostram que 88,1% dos estudantes com deficiência física, transtornos do espectro autista e altas habilidades ou superdotação estavam matriculados em classes comuns em 2020. Dez anos antes, a porcentagem era de 68,9%.

No Brasil, entretanto, há um problema estrutural na educação especial, que vai da falta de infraestrutura ao despreparo de educadores para lidar com esse público, diz Luiza Russo, do Paradigma.
Só 28,3% das instituições de ensino tinham salas de recursos multifuncionais em 2020 e 56,1% não tinham sequer banheiros adequados para PCDs.

A pouca experiência dos professores foi um problema para a inserção de Renato Guimarães Mascarenhas, 26, que tem síndrome de Down. Formado há um ano no ensino médio, ele passou por uma escola municipal e duas particulares, todas em Duque de Caxias (RJ), e teve dificuldade para acompanhar as aulas.

"Na escola da prefeitura, faltavam pessoas preparadas. Levávamos o Renato para quatro horas de aula, mas chegava lá, tinha 30 minutos. Ele não quis mais voltar para a escola. O professor não está preparado para atender aluno com deficiência. Meu filho ficava muito defasado em algumas matérias", diz Adilson Castro Mascarenhas Junior, 58, pai de Renato.

José Turozzi, presidente da Apae Brasil (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais), federação com 1.400 escolas especializadas no país, diz que muitos dos alunos atendidos nessas instituições são oriundos de cidades onde escolas regulares não estão prontas para absorvê-los.

Mas, de acordo com ele, reter os estudantes não é o objetivo da Apae. "Se a família entende que a pessoa tem a oportunidade de ir para escola regular, nós incentivamos."

Para Carolina Videira, fundadora da Turma do Jiló, associação social que atua em estabelecimentos públicos e particulares para garantir acessibilidade, PCDs estão sendo inseridos na rede regular, mas não significa que estejam sendo incluídos. O decreto é mais uma forma de segregá-los, diz ela.

"As pessoas têm direito à educação especial, mas de maneira suplementar à escola regular e inclusiva."

Numa audiência realizada pelo STF em agosto, Ilda Ribeiro Peliz, secretária de Modalidades Especializadas do Ministério da Educação, afirmou que o novo decreto se apoia na liberdade de escolha de cada família e não pode ser interpretado como segregativo. Segundo a secretária, alguns grupos de alunos com deficiência precisam de escolas especializadas. Procurado, o Ministério da Educação não se pronunciou.

Evolução da legislação brasileira sobre acessibilidade 

1961 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 
- A educação de "excepcionais" (o termo era usado para pessoas com deficiência) deve ser enquadrada no sistema geral de ensino, na medida do possível

1971 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
- Substitui a lei anterior;
- Garante o acesso a tratamento especial, mas não especifica se deve ser feito no ensino regular

1978 - Emenda Constitucional nº 12
- Garante educação especial e gratuita, assistência e reabilitação e acesso a lugares públicos;
- Proíbe a discriminação

1988 - Nova Constituição
- Proíbe discriminação quanto a salários e critérios de admissão em empregos;
- Espaços e transportes públicos devem ser adaptados para acesso de PCDs;
- Determina atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular

1989 - Lei Federal nº 7.853
- Garante a integração de pessoas com deficiência nas áreas de educação, saúde, formação profissional, recursos humanos e edificações;
- Estabelece a obrigatoriedade e gratuidade da oferta de educação especial no ensino público e o acesso a materiais, merenda e bolsas de estudo (lei regulamentada pelo decreto 3.298, de 1999)

1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente
- Garante o atendimento especializado a alunos com deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino

1991 - Lei de Cotas
- Determina que empresas com mais de 100 empregados destinem de 2% a 5% das vagas a pessoas com deficiência

1996 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
- A educação especial deve ser preferencialmente oferecida pela rede regular de ensino;
- Os sistemas de ensino devem oferecer currículo, métodos, técnicas e recursos para garantir a integração dos alunos com deficiência, além de especialização adequada aos professores

1999 - Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência
- O Conade (hoje integra o Ministério dos Direitos Humanos) é criado para acompanhar e avaliar políticas públicas de inclusão de PCDs

2000 - Leis nº 10.048 e nº 10.098
- Estabelecem reserva de assentos em transportes coletivos, normas de construção de edifícios e planejamento de espaços urbanos mais acessíveis

2001 - Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica
- Os sistemas de ensino devem matricular todos os alunos, sendo a escola responsável pelo atendimento especializado;
- Escolas regulares podem criar classes especiais para alunos que apresentem alto grau de dificuldade na aprendizagem, mas sendo possível inseri-los nas classes comuns novamente

2002 - Lei nº 10.436
Reconhece a Língua Brasileira de Sinais como meio legal de comunicação e expressão

2006 - Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos
- Incentiva a disseminação de informações para a sensibilização da sociedade, visando a garantia de acessibilidade para pessoas com deficiência

2007 - Plano de Desenvolvimento da Educação
- Cria salas multifuncionais e programas que contemplam a formação de professores e o acompanhamento de alunos com deficiência

Plano de Meta Compromisso Todos pela Educação
- Decreto garante o acesso de alunos com deficiência nas classes comuns do ensino regular

2008 - Decreto nº 6.571
- O atendimento educacional especializado deve estar integrado à proposta pedagógica da escola e envolver a participação da família
- O Ministério da Educação fica obrigado a prestar apoio financeiro e técnico para a criação de salas multifuncionais, capacitação de professores e gestores e adequação arquitetônica das escolas
- (revogado pelo Decreto 7.611, de 2011)

2009 - Decreto nº 6.949
- Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, documento assinado em 2007;
- Proíbe qualquer tipo de discriminação baseada na deficiência;
- Garante educação gratuita e de qualidade para PCDs

2011
Decreto nº 7.480

- Extingue a Secretaria de Educação Especial (Seesp) e cria a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), que passa a cuidar da educação especial até 2019

Decreto nº 7.611
-
Garante um sistema educacional inclusivo em todos os níveis de ensino;
- Estado tem o dever de oferecer medidas de apoio individualizadas e efetivas para alunos com deficiência

2012 - Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Lei nº 12.764)
- Considera indivíduos com transtorno do espectro autista como pessoas com deficiência e garante a eles o acesso à educação

2014 - Plano Nacional de Educação
- Estabelece como uma das metas a serem cumpridas até 2024 a universalização do acesso a educação de pessoas com deficiência, preferencialmente em escolas regulares

2015 - Lei Brasileira de Inclusão
- Estabelece o dever do governo de instituir projeto pedagógico para institucionalizar o atendimento educacional especializado, de tradutores e intérpretes de Libras, de guias intérpretes e de profissionais de apoio

2019 - Decreto nº 9.465
- Extingue a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) e cria a Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação

2020 - Política Nacional de Educação Especial (Decreto nº 10.502)
- Apontado como retrocesso, estimula a criação de escolas especiais, abrindo a possibilidade de encaminhar alunos com deficiência para esses espaços separados, após avaliação de uma equipe multidisciplinar (suspenso pelo STF)

Fontes: Ministério da Educação, Câmara dos Deputados, Unicef, Organização Internacional do Trabalho, Senado, Planalto, OAB, Diário Oficial da União

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