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Hospital italiano usará tecnologia de Nicolelis em pacientes com limitação motora

Aparelhos prometem solução sem cirurgia e concorrem com chip cerebral de Elon Musk

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São Paulo

O maior hospital privado da Itália, localizado em Milão, começará a oferecer as neurotecnologias desenvolvidas pela equipe liderada pelo cientista brasileiro Miguel Nicolelis, professor emérito da Universidade de Duke, nos Estados Unidos.

O Instituto Nicolelis anunciou a parceria nesta terça-feira (5) e os atendimentos devem ter início ainda neste semestre.

"Marcamos uma aula magna na Universidade Vita-Salute San Rafaelle em junho, em que vamos comemorar os dez anos do chute com auxílio do exoesqueleto na abertura da Copa do Mundo, mas os trabalhos tendem a começar antes", disse o neurocientista à Folha.

Pacientes treinam para usar prótese virtual com auxílio de realidade virtual desenvolvida por alunos de Nicolelis. Esquema mostra funcionamento da prótese
Pacientes treinam para usar prótese virtual com auxílio de realidade virtual desenvolvida por alunos de Nicolelis - Divulgação/Instituto Nicolelis

De acordo com Nicolelis, sua equipe desenvolveu tratamentos de inspiração na neurociência e na interface cérebro-máquina para paralisia por lesão medular, doença de Parkinson, epilepsia crônica não tratável, derrame e esclerose múltipla.

"Estamos ampliando consideravelmente o leque de uso de interface entre cérebro e máquina", afirmou.

Trata-se da tecnologia que usa a leitura dos sinais cerebrais para executar comandos em computadores e objetos robóticos.

Nicolelis é um pioneiro na área e realizou o primeiro teste bem-sucedido da tecnologia em 2002, em vídeo célebre na qual macacos jogam o clássico do Atari, Pong, sem usar controles, a partir dos sensores cerebrais.

O primeiro artigo sobre a técnica é de 1999 e completa 25 neste ano.

Elon Musk e outras empresas mundo afora apostam em adaptações da tecnologia para usos terapêuticos e com promessas de superar os limites do ser humano a partir de implantes cerebrais.

Nicolelis chama o chip de Musk de invasivo e simulacro de ficção científica de segunda.

Diferentemente da empresa patrocinada por Musk, a Neuralink, que faz a interface cérebro-máquina por meio do implante de um microchip a partir de cirurgia, a equipe do brasileiro optou por abordagens não invasivas. As ondas neurais são captadas e processadas a partir de uma touca repleta de sensores.

Como não há necessidade de procedimento cirúrgico, o custo cai muito, e a segurança é maior, segundo Nicolelis.

"Esses dispositivos provaram ser tão eficazes quanto ou mais, do ponto de vista de melhora funcional do paciente, [do que os implantes]", afirmou o brasileiro.

A solução sem cirurgia ainda diminui o desafio regulatório junto às autoridades sanitárias.

Fundada em 2016, a Neuralink, por exemplo, conseguiu permissão da FDA (agência reguladora de medicamentos e alimentos nos EUA) para iniciar o recrutamento para o primeiro teste em humanos apenas em maio do ano passado e anunciou detalhes sobre o ensaio clínico em 19 de setembro.

Uma pessoa com paralisia recebeu o primeiro chip da Neuralink neste ano e conseguiu movimentar um mouse com o pensamento. Essas informações foram divulgadas em tweets, na rede social X, por Musk, que não deu detalhes sobre a saúde do paciente.

A parceria entre Nicolelis e o hospital IRCCS San Raffaele envolve tecnologias em desenvolvimento desde a apresentação da primeira prótese controlada pelo cérebro na então Arena Corinthians, em Itaquera, em 2014.

"Ao longo dos últimos dez anos, nós fizemos vários artigos que justificam nossas escolhas por técnicas não invasivas, eu publiquei uma teoria completa de como eu acredito que essas intervenções podem ajudar pacientes", disse Nicolelis.

"Nós temos agora um exoesqueleto muito mais compacto, fácil de usar. Eu o chamo de 'nosso fusca', porque ele é seguro, não tem qualquer risco e poderá ser comercializado a um custo menor do que é anunciado hoje", afirmou.

O exoesqueleto pode ser controlado a partir de comandos cerebrais ou de um aplicativo no celular, que funciona também como um intermediário entre o sinal da touca transmitido via bluetooth e a prótese.

Antes de aprender a operar o exoesqueleto, o paciente treina o controle cerebral sobre o movimento em realidade virtual, controlando um avatar, como em um videogame.

"Em pessoas paralisadas, a noção de existência do corpo chega só até o limite da lesão na medula espinhal, por isso, o paciente precisa retreinar o cérebro para entender que o resto do corpo está ali, não só se mexendo, mas tendo sensações", afirmou o neurocientista.

As soluções para Parkinson e epilepsia crônica têm inspiração em outro achado de Nicolelis, publicado na capa da edição de março de 2009 da ilustre revista Science: estímulos elétricos na medula espinhal reduzem sintomas de distúrbios de movimento no sistema nervoso.

Para Nicolelis, a sua proposta de aplicação da interface cérebro-máquina e outras áreas da neurociência dribla dilemas éticos de propostas por ele chamada de invasivas ao se ater ao simples. "Nosso foco é tratar pessoas em grande escala."

"Ninguém está interferindo com a atividade elétrica do cérebro", disse o pesquisador sobre as preocupações com os riscos de vigilância do pensamento. Ele também chama de bobagem a ideia de que será possível carregar o cérebro com informações, como ocorre no filme Matrix.

No caso da Neuralink, Musk afirma que o objetivo de longo prazo da empresa é permitir, por meio do implante cerebral, que as pessoas desenvolvam um super-intelecto ao receberem auxílio permanente de uma inteligência artificial geral —aquela que supera as capacidades humanas.

Nicolelis, contudo, avalia que as interfaces cérebro-máquina invasivas, que ele inventou e testou em animais, têm aplicações clínicas "muito restritas". "Não escalam, custam caro e param de funcionar em um período curto de tempo, não é como um marca-passo que dura 25 anos."

Uma neurocirurgia para implantar um chip custa centenas de milhares de dólares nos Estados Unidos e é inacessível para a grande massa dos pacientes, conforme o neurocientista. "Ainda é impossível retirá-los, se tirar, puxa o tecido cerebral junto", disse.

"Esses implantes são sensacionais para estudar o cérebro em animais, não em tratamentos", afirmou o brasileiro. Ainda segundo ele, a maioria dos pacientes que ouviu nos últimos dez anos não quer passar por cirurgia.

Os defensores da abordagem cirúrgica, por outro lado, afirmam que o contato direto com o cérebro permite captar em maior detalhe os impulsos nervosos. Isso abriria espaço para novas aplicações da interface cérebro-máquina.

Agora, o foco do cientista brasileiro é baixar o custo dos tratamentos não invasivos para, no plano ideal, atender o mais de 1 bilhão de pacientes com disfunções motoras. A parceria com o hospital italiano é o primeiro passo para popularizar essas soluções.

O projeto de Nicolelis inclui planos para fechar colaborações com instituições médicas de ponta nos cinco continentes.

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