Roteiro gastronômico de Brasília tem casa mais antiga que a própria capital

Mapas afetivos, com atrações arquitetônicas e culinárias, guiam o visitante na exploração da vida que vai além da política

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Brasília

A capital do país é um destino de viagem do mundo invertido. Em Brasília, diárias de hotel são mais baratas aos fins de semana. Nos feriados, abundam descontos para as passagens aéreas.

Os brasilienses, porém, querem provar ao resto do Brasil que é possível amar a utopia urbanística de Lúcio Costa, Niemeyer e Kubitschek. Duas iniciativas, sem ligação entre si, produziram mapas afetivos da cidade.

Mapa gastronômico afetivo de Brasília, produzido pelo programa de iniciação científica do Centro de Ensino Unificado de Brasília, o Ceub
Mapa gastronômico afetivo de Brasília, produzido pelo programa de iniciação científica do Centro de Ensino Unificado de Brasília, o Ceub - Reprodução

O B Hotel, um dos mais luxuosos de Brasília, elaborou um mapa afetivo de 130 marcos arquitetônicos, passeios e programas gastronômicos. Somados os 36 restaurantes e lanchonetes destacados pelo Ceub (Centro de Ensino Unificado de Brasília), são 161 atrações —cinco delas estão em ambos os mapas.

Um mapa afetivo traz uma visão subjetiva e emocional de um determinado território. Para o visitante, funciona como um guia para ir aonde os locais vão.

O próprio B Hotel figura como atração de seu mapa. O prédio, com janelas dispostas de forma intencionalmente caótica, foi projetado por Isay Weinfeld e se destaca na paisagem tediosamente hoteleira do setor hoteleiro de Brasília.

O bar na cobertura, com vista para o estádio Mané Garrincha e a vastidão do Eixo Monumental, tem a happy-hour mais concorrida de brasilienses e visitantes ligados em moda e design.

Chama-se simplesmente 16, por estar no 16º e último andar do hotel. "É o nosso terraço, sem essa de rooftop", diz o gerente Alfredo Stefani.

O esforço para manter a conversa no léxico do português brasileiro encontra resistência em parte dos frequentadores, que insiste em chamar o hotel de "Bi" (como a letra "b" em inglês).

No cardápio do bar, porém, vingam a brasilidade e o regionalismo, com ingredientes regionais como a castanha de baru (típica do cerrado) e o queijo da serra do Bálsamo, em Goiás.

O B, como todos os hotéis de Brasília, tem ocupação reduzida nos dias em que a cidade não funciona plenamente –da sexta à segunda-feira, 4/7 da semana, algo nada desprezível. Daí a ideia de chamar hóspedes com a promoção da capital como destino de lazer.

O mapa afetivo do B Hotel foi impresso e distribuído nos apartamentos. Uma amostra de roteiro foi apresentada por Patrícia Herzog, a curadora do mapa.

Começou no Memorial JK, um monumento que, para quem passa de carro na avenida de seis faixas, parece apenas uma foice gigante de concreto.

Sob o monumento propriamente dito há, além do mausoléu de Juscelino Kubitschek, uma exposição com fotos, filmes e objetos que contam a saga da construção de uma capital nacional no meio do mato. Destaque para a impressionante biblioteca pessoal de JK, com 3.000 livros, recriada numa sala do museu.

De lá para a Asa Sul, onde a SQS 308, a chamada superquadra modelo, é um pedaço preservado e funcional de como toda Brasília deveria ter sido –mas acabou não sendo, devido a interesses diversos e percalços históricos como o golpe de 1964.

Superquadra, no universo brasiliense, é um conjunto de blocos residenciais. No projeto de Lúcio Costa, toda superquadra deveria ter escola pública, um clube de vizinhança e biblioteca, entre outros espaços de convivência. Assim é a 308 Sul, com jardins de Burle Marx e uma igrejinha desenhada pelo próprio Niemeyer, que era ateu.

Fachada do B Hotel, em Brasília, projetado por Isay Weinfeld; janelas dispostas de forma intencionalmente caótica destacam o prédio na paisagem tediosamente hoteleira do setor hoteleiro de Brasília
Fachada do B Hotel, em Brasília, projetado por Isay Weinfeld; janelas dispostas de forma intencionalmente caótica destacam o prédio na paisagem tediosamente hoteleira do setor hoteleiro de Brasília - Divulgação

Da Brasília ideal para a realidade de 2023, botei-me a explorar as indicações gastronômicas dos mapas. Para vibrar na mesma frequência, escolhi lugares ligados à história da capital.

A pizzaria Dom Bosco, fundada em 1960 como a própria cidade, fica a poucos passos da superquadra modelo. O endereço original, diga-se, pois a Dom Bosco se tornou uma rede com loja até no aeroporto.

Mencionada nos dois mapas, a pizzaria é um lugar bem simples, com uma estufa que guarda as pizzas vendidas pela fatia, de um único sabor: muçarela. Massa pré-assada, queijo e, por cima dele, um molho de purê de tomate com orégano.

Parece pouco tentador. E é. Mas um amigo me deu a dica: não peça a pizza da estufa. Espere sair uma do forno, elas saem o tempo todo. Foi o que fiz. Não é a melhor pizza do mundo e nem pretende ser, mas é um lanche de pegada caseira e bem satisfatório para quem está passando e quer beliscar.

A poucos passos dali, o nordestino Xique-Xique é um pouco menos antigo: abriu em 1979. Serve monstruosidades (no bom sentido) como um baião-de-dois com carne-de-sol suficiente para jantar na quinta-feira e só voltar a almoçar na próxima terça, quando a vida recomeça em Brasília.

Não é exagero dizer que o Beirute, restaurante árabe que se rendeu à vocação boêmia, é o bar mais tradicional de Brasília. O primeiro endereço, na Asa Sul, nasceu em 1966; a unidade da Asa Norte funciona desde 2007. Ambos são listados no mapa do B Hotel.

Fui ao Beirute da Asa Norte por motivo de: a amiga que me acompanhou mora na Asa Norte e não queria sair de lá. Dizem que ele é melhor que o irmão mais velho, mesmo. É um dos poucos lugares do Plano Piloto que ficam animados até tarde nos dias de semana.

Carne de sol do restaurante Xique-Xique, em Brasília
Carne de sol do restaurante Xique-Xique, em Brasília - Reprodução

Curiosamente, a comida mais famosa do Beirute não é o kibeirute (quibe recheado de queijo) nem o kiberovo (sim, recheado de ovo). É o filé à parmegiana. Uma boa parmegiana, dentro dos parâmetros do gosto brasileiro: muito molho, molho saboroso, batatinhas bem fritas.

Parmegiana, insolitamente, parece ser uma obsessão dos brasilienses. Encarei um rodízio de bife com queijo no Roma, o restaurante mais antigo em funcionamento contínuo na cidade, recomendado pelo mapa afetivo do curso de nutrição do Ceub.

Sem brincadeira, o Roma é mais velho do que Brasília. Opera desde 15 de abril de 1960, seis dias antes da inauguração oficial da cidade.

Isso sacode as ideias de quem, preguiçosamente como eu, tinha a imagem de uma cidade planejada que apareceu do nada, em um segundo. Brasília já pulsava quando o primeiro assentamento de operários, a Candangolândia, se instalou em 1956.

Brasília tem uma história digna do afeto mapeado no papel. O Roma, uma cantina anacrônica e por isso mesmo fascinante, é um tesouro preservado da história que não foi feita por figurões como JK e todos que vieram depois.

Quanto ao bife, vá por mim: saboreie a história.

O jornalista viajou a convite do B Hotel

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