Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Tati Bernardi

Vai ter que ser na marra?

Eu era estagiária e usava calças tão justas e decotes tão largos que hoje só de pensar sinto assaduras e faringites. Não era elegante nem discreta (coisas que sempre invejei), mas era insuportavelmente feliz e cheia de amigos. Trabalhava até bem tarde na agência e, porque era perigoso ir sozinha, convidei um dos redatores para lanchar comigo na padaria. Tinha discutido feio com a minha mãe por telefone e, na segunda mordida no pão, desabei em lágrimas gordas. Meu colega me deu um guardanapo vagabundo de boteco e apontou, tal qual um pai para um brinquedo enquanto o filho faz manha: "Sabia que eu moro naquele prédio ali?"

Eu estava cansada das exigências de casa, do trabalho e do namorado que só me colocava defeitos e chifres. Topei o convite para ouvir música e descansar um pouco. E se ele tentasse me agarrar? Claro que pensei isso. Bom, esse é o tipo da coisa que a gente vê se está a fim na hora.

Na metade da primeira faixa do disco do Cartola ele tentou me empurrar pro quarto e eu percebi que não estava a fim. Ele tentou de novo, com mais força, e eu peguei minha bolsa pra ir embora. Então ele segurou meu braço, machucando: "Vai ter que ser na marra?"

Cresci ouvindo que qualquer macho, não por falta de caráter, mas "porque é da sua natureza", poderia agir de forma inconsequente e bestial. Mas a donzela, esse ser maravilhoso, sensível e purificado (o que me soava elogio na época) é quem deveria ser esperta e colocar limites. Que mulher com a minha idade não ouviu "a ocasião faz o ladrão"?

Tudo isso porque ao homem não tinha sido dado, pelos poderes de Jesus e Grayskull, muita delicadeza na hora em que o pau fica duro. Aliás, trouxa do cara que, ao se ver com uma menina que já tinha topado ficar sozinha com ele, não forçasse a barra.

Não vou ligar agora pro meu pai, que tem 75 anos, e falar "'má' que conselho machista"! Mas certamente vou dizer ao meu filho, se tudo der certo, que os mocinhos são seres maravilhosos e sensíveis (vou pular a parte mala do purificado) e que uma garota pode se esfregar pelada nele, pode ter tatuagem de demônio fumando crack, pode ter transado com todos que ele conhece, pode falar palavrões mais cabeludos que sua própria nudez e, ainda assim, ela deverá ser tratada com todo o respeito e sem qualquer violação não consentida.

Eu sempre gostei de ambientes de trabalho com todo mundo flertando, se pegando, se provocando. Nunca simpatizei com o discurso das amigas mais feministas que parecem lutar contra a delícia que é viver em um país tão sexualizado. Não é contra a putaria que devemos ser (isso é moralismo), é contra a violência. O problema não é olharem pra nossa bunda quando andamos na rua (ainda que isso irrite), o problema é quem acredita que nossa bunda, andando na rua, só saiu hoje porque queria dar ocasião para o ladrão.

Comecei a sentir vontade de vomitar (sempre ela me salvando) e o empurrei tão forte que caiu e machucou o ombro. Ao longo do trajeto para a minha casa, eu só conseguia pensar como eu era péssima filha, péssima profissional, me vestia vulgarmente, provocava e depois não queria. Cheguei a sofrer: tadinho, machucou o ombro! Queria que alguém tivesse me dito, naquele dia, as coisas que eu sei hoje.

É urgente expor todos os vícios, sejam eles gritantes ou velados, de um mundo tão machista. Mas vou além: quando ele me mandou obedecer "ou ia ser na marra", por um instante eu pensei "isso é ser homem, eu é que não deveria estar aqui". A faxina também tem que ser feita dentro de nós.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.