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Só o pensamento complexo pode nos salvar da crise climática

Para além de ações imediatas, alerta da ONU é para uma revisão no modelo de desenvolvimento

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São Paulo

A mentalidade que criou a crise climática não vai nos ajudar a sair dela. O alerta dado pelo painel do clima da ONU nesta semana, com o novo relatório sobre os impactos socioeconômicos causados pelas mudanças climáticas, indica que a sociedade global ainda precisa aprender a ligar os pontos entre o desenvolvimento humano e a saúde do planeta.

Para quem ainda achava que o aquecimento global trataria apenas de um mundo mais quente, os efeitos em cascata são impressionantes: falta de água; desnutrição; perda de safras; mortes por ondas de calor e por eventos extremos como inundações; doenças infecciosas, diarreicas e até transtornos mentais. Estes impactos já são registrados atualmente.

O aquecimento muda todo o planeta e nós, humanos, estamos no pacote.

Imagem aérea de inundação na cidade de Raposos, um dos primeiros povoados de Minas Gerais, em janeiro de 2022 - Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais/Divulgação

Entretanto, a inclusão humana como parte do sistema natural não era óbvia para a base filosófica do desenvolvimento socioeconômico adotado na maior parte do mundo desde a industrialização, influenciado pelos pensamentos cartesiano, positivista e reducionista. Dada como certa e inerte, a natureza ficou de fora da fórmula do desenvolvimento humano.

O pensamento linear se materializou nas linhas de produção, que vão da extração ao descarte e deixam de fora os resíduos e poluentes, chamados de externalidades ambientais.

O carbono, maior vilão do clima, é só mais um rejeitado da linha de produção econômica, assim como outros gases de efeito-estufa, emitidos principalmente por fontes de energia fóssil e pelo desmatamento.

Quem paga a conta é toda a sociedade, mas principalmente os mais pobres e os segmentos mais vulneráveis. O relatório da ONU revelou o custo social do carbono para o país: cada tonelada do gás emitida no mundo custa US$ 24 (R$ 124) ao Brasil em danos climáticos.

É aí que entra a necessidade de políticas de adaptação ao clima. Voltadas a preparar o terreno e conter a proporção dos danos, elas podem acabar gerando impactos ainda mais desastrosos se forem mal planejadas. É o que o relatório do painel do clima chamou de má adaptação.

Entre os exemplos do que não fazer para tentar conter os danos de eventos climáticos extremos estão as tecnologias de modificação da radiação solar -um paliativo de baixa efetividade- e a arborização de terras onde naturalmente não haveria florestas -como é comum nos biomas dos campos, no cerrado e na caatinga.

Em vez de restauração do ecossistema, a intervenção desavisada sobre como as espécies lidam com aquele ambiente acaba afetando a biodiversidade e tem o efeito oposto: gera degradação ambiental.

Outra medida avaliada negativamente pelo painel do clima é a construção de muros para conter enchentes. Conforme ficam mais intensas, elas rompem as barreiras e aumentam a proporção do desastre, gerando impactos ainda mais negativos.

Enquanto o pensamento linear aposta em um muro para conter um inimigo externo, sob a mentalidade de que o sistema natural estaria apartado do humano, o pensamento complexo calibra o foco para compreender as relações sistêmicas.

Ou seja, a complexidade assume a teia de conexões dos sistemas vivos e seus constantes movimentos. A partir daí, é possível estimar os efeitos em cascata e criar políticas públicas integradas nas diferentes pastas de um governo. O olhar complexo para os sistemas naturais ainda permite um trunfo: transformar impactos negativos em positivos.

Um bom exemplo está nas práticas de convivência com o semiárido, no Nordeste brasileiro. A região é uma das mais vulneráveis ao clima, já vive secas mais longas e pode experimentar aquecimento de até 8ºC. Nos últimos anos, medidas simples como a construção de cisternas para armazenamento de água já melhoraram a relação das comunidades rurais com a aridez do sertão.

O investimento em plantas e criações de animais adaptados ao semiárido também promete extrair vantagens econômicas da região. Há ainda a aposta na energia eólica, o que em tese também diminui a competitividade das hidrelétricas pelo uso da água no Nordeste.

Outro ponto fundamental que está começando a entrar nas negociações da ONU sobre clima e biodiversidade é a priorização de soluções baseadas na natureza. O plantio de árvores, por exemplo, captura carbono e o estoca em todo o corpo da planta, com benefícios extras de serviços à biodiversidade e à geração de chuvas. Além de reduzir emissões, a ação também ajuda na adaptação às mudanças climáticas.

Isso significa se inspirar no sistema natural para encontrar soluções mais completas, em vez de inventar soluções reducionistas, como as citadas tecnologias de mudança na radiação solar.

Outra invenção paliativa é o uso da geoengenharia para literalmente estocar gases-estufa no subsolo - o que se assemelha a varrer a sujeira para debaixo do tapete.

Além de avaliar as medidas de adaptação climática, o novo relatório do painel do clima da ONU apontou correlações entre as políticas de clima e todos os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU - que passam por itens como educação, igualdade de gênero, energia, paz e erradicação da pobreza.

A conclusão é que o fator climático precisa ser incluído de forma transversal no planejamento do desenvolvimento, com uma revisão profunda de modelo. A ONU propõe o conceito de desenvolvimento resiliente ao clima como aquele que aposta nas políticas de clima como via do desenvolvimento sustentável.

Em 1946, no contexto das ameaças nucleares, Albert Einstein escreveu em um telegrama reportado no jornal The New York Times que "um novo tipo de pensamento é essencial à humanidade para que sobreviva e se mova a níveis mais elevados".

A frase ficou famosa sob a versão "não se pode resolver um problema com a mesma mentalidade que o criou", também atribuída ao físico. Mais do que ações imediatas e urgentes, a crise climática convoca a humanidade à revisão da forma de pensar o desenvolvimento humano, inexoravelmente atrelado às condições ambientais.

A adaptação climática nos dá uma última chance de aprender - às pressas e em meio a turbulências - a habitar o planeta.

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