Guarda-parque que cuida de Abrolhos há 35 anos recebe prêmio internacional

Servidora do ICMBio é apaixonada por aves e tartarugas e aprendeu a nadar no próprio parque natural, com crianças

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Rio de Janeiro

Quando Maria Bernadete Silva Barbosa, 60, se mudou para o arquipélago dos Abrolhos nem sabia nadar. Acreditava na lenda do encantamento do boto. Hoje, 35 anos depois, é mergulhadora e seu trabalho como monitora ambiental é destaque no parque, que tem a maior biodiversidade marinha do Atlântico Sul.

Berna, como é conhecida, foi levada até lá pelo marido, Adolfo, em uma viagem de férias. Ele se apaixonou pelo local e decidiu ficar, tornando-se guarda-parque. Após a morte do companheiro, quis seguir com o sonho de manter o lugar vivo e preservado.

Berna veste o uniforme de guarda-parque e seguro um pássaro na mão
Maria Bernadete Silva Barbosa, 60, participa do monitoramento de aves, que são sua grande paixão; atividades ajudam a preservar biodiversidade do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos - Enrico Marcovaldi

Neste ano, a servidora do ICMBio ganhou US$ 10 mil dólares (R$ 48,5 mil) no Prêmio Internacional dos Guarda-Parques. A premiação, dada pela União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês), será destinada à manutenção do local.

Em depoimento, ela navega pela própria história, falando sobre o amor ao marido, o trabalho com a preservação da biodiversidade e a representatividade feminina.

"Sou de Oriximiná (PA), uma terra de rio, que não tem nada a ver com o mar. Meus pais falavam que a gente não podia entrar na água por causa do boto, que iria nos encantar —aquela coisa de interior. Por isso, sempre tive medo.

Meu pai caçava para trazer nossa alimentação. Minha mãe trabalhava na cozinha de uma casa de família. Desde nova, eu cuidava dos meus irmãos menores, já que sou a mais velha de sete filhos. Mas via que as coisas eram muito difíceis.

Fui morar em Belém aos oito anos para trabalhar e ajudar meus pais. Lá, mesmo nova, cozinhava em uma casa de família enquanto estudava.

Depois de anos trabalhando e estudando, me formei no magistério. Queria ser professora de educação física, porque gostava de esportes. Até que conheci o Adolfo, e minha vida mudou.

Para a família com quem eu morava, eu me casaria com alguém que eles escolhessem. Quando souberam do Adolfo, ficaram um pouco aborrecidos. Mas, no momento que você tem um amor verdadeiro, precisa fazer uma escolha. Então, decidi sair de casa e casei com ele, aos 24 anos.

Meses depois, o Adolfo me levou para conhecer a Bahia. Eu nunca tinha saído do Pará, e a ideia era passarmos um mês em Abrolhos. Mas, quando chegamos, ele falou que queria ficar mais alguns dias. Até que os dias viraram semanas.

Uma das coisas que me fizeram ver Abrolhos de verdade foi observar o comportamento das aves. Elas saíam de manhã, voltavam no fim da tarde. No pôr do sol, eu sentava nas pedras e assistia aos pássaros. Eu pensava: ‘Se eles conseguem ficar, eu vou ficar também’.

Maria Bernadete Silva Barbosa

Servidora do ICMBio

Fiquei desesperada, porque preferia ir embora. Achava que o lugar não tinha nada, só o mar. Foi um ano chorando, querendo voltar para o meu Pará.

Uma das coisas que me fizeram ver Abrolhos de verdade foi observar o comportamento das aves. Elas saíam de manhã, voltavam no fim da tarde. No pôr do sol, eu sentava nas pedras e assistia aos pássaros. Eu pensava: 'Se eles conseguem ficar, eu vou ficar também'.

Não sabia entrar na água nem nadar. Tive que aprender tudo aqui, com as crianças da ilha, que eram filhos dos militares da Marinha.

Começamos como voluntários do IBDF (Instituto Brasileiro do Desenvolvimento Florestal, que se fundiu a outros órgãos para criação do Ibama), até nos chamarem para trabalhar lá oficialmente. Depois de um tempo, eu já estava inteirada nas atividades.

Fui descobrindo a natureza, por curiosidade e por força de vontade. Hoje vejo que parei em um lugar que fui destinada. Acho que em outra vida fui uma pesquisadora de aves e vim para cá completar essa missão.

Em 1992, quando eu tinha 29 anos, meu marido morreu em um acidente de mergulho. Foi muito complicado. Eu estava grávida e acabei perdendo o bebê.

Eu e Adolfo falávamos de um dia sobrevoar Abrolhos. Isso aconteceu quando um helicóptero veio buscar o corpo. Ali, falei para ele: 'Você não tem noção de como é lindo este lugar de cima. Estou fazendo o que sempre sonhamos, mas, infelizmente, não da forma que pensávamos'.

Depois da morte do Adolfo, fui para Belém. Quando cheguei, todos me falavam para continuar por lá. Mas eu fechava os olhos e só conseguia ver Abrolhos. Percebi que meu coração estava naquele lugar. Depois de um mês em Belém, liguei para o meu chefe no IBDF e avisei que voltaria.

Quanto mais eu trabalhava, era melhor, porque não pensava em muita coisa. A rotina e a natureza me ajudaram a seguir em frente.

Voltei a atuar com preservação, assumindo demandas do parque. Fui entendendo sobre as pesquisas, principalmente das aves e das tartarugas, que são meus xodós. Aprendi a mexer em motor, a dirigir botes, fiz curso de mergulho. Nas folgas, me voluntariava em outros parques. Tudo isso para fazer o melhor do meu trabalho.

Aos poucos, organizamos a educação ambiental, que melhorou muito a visão dos pescadores que trabalham aqui e do público que vem ao parque, em relação ao nosso trabalho.

Também conheci outra pessoa aqui em Abrolhos, o Russo. Ele me ajudou muito. Não estamos mais casados, mas ainda somos amigos.

Tivemos uma filha, que hoje tem 28 anos. Nós ficávamos entre a ilha e a terra, o que foi bom para nós duas. Não abandonei o trabalho, e todo o pessoal daqui me ajudou a cuidar dela.

Hoje quero representar as mulheres, mostrar que temos capacidade de fazer tudo. Já ouvi muitos comentários chatos de homens. Quando fiz um curso de guarda-parque, éramos apenas três meninas em uma turma cheia.

Um dia, saímos para fazer uma atividade de bote. Eu disse que poderia dirigir, mas os homens não aceitaram. Depois de um tempo, o bote falhou. Falei que sabia arrumar o motor, e eles duvidaram. Quando consegui consertar, até me pediram desculpas.

Depois de anos de trabalho, ganhar o prêmio foi uma grande satisfação. Fiquei feliz pela IUCN me escolher, como uma representante mulher. Esse prêmio não é só meu, mas de todos que me ajudaram, desde quando cheguei até hoje.

Quero que a profissão de guarda-parque seja mais reconhecida no Brasil. Para isso, vou continuar trabalhando enquanto der e talvez saia por aí dando palestras em escolas.

A vida quis me mostrar que eu poderia colaborar com um lugar incrível como Abrolhos. Prefiro estar aqui do que em terra. E olha que eu nunca imaginei que ficaria por tanto tempo."

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