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Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

Descrição de chapéu Coronavírus Governo Bolsonaro

Homenagem de Bolsonaro com sanfoneiro não é aos mortos, mas aos otários

Ataque à cidadania, explícito no desdém do presidente pela morte, é projeto de governo

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No final do primeiro ano da guerra contra Esparta, quando Atenas ainda não tinha sido atingida pela peste, Péricles foi escolhido para fazer o encômio dos que caíram em combate.

Relatado por Tucídides, ele próprio um valoroso general, o discurso de Péricles aparece no segundo livro da “História da Guerra do Peloponeso”: “Antes de passar ao louvor dos mortos, cumpre descrever os princípios da vida pública que nos norteiam, as instituições políticas e o caráter nacional que nos guiaram até a grandeza”.

Estava falando da virtude cívica da democracia: “Somos tolerantes uns com os outros nas relações privadas, mas nos submetemos à lei nas questões públicas”.

Mulher com máscara em frente ao Parthenon, em Atenas, na Grécia - Alkis Konstantinidis - 27.mai.2020/Reuters

Atenas era uma democracia para seus cidadãos (a primeira na história da humanidade) e uma potência imperial para os estrangeiros. Foi esse precisamente o motivo da guerra. O que o panegírico de Péricles ressalta, entretanto, apesar das imperfeições do regime, é a associação entre democracia e honra: “Não nos apoiamos na dissimulação, mas na vocação natural para a ação corajosa. [...] Cantei as glórias da cidade, mas foi a qualidade desses homens e de outros como eles que a glorificou”.

A glória da democracia dependia da qualidade dos homens que a constituíam. Imagino o que você deve estar pensando.

Péricles prossegue sobre os deveres do Estado: “A honra expressa nesta cerimônia foi concedida aos que viemos enterrar. Como tributo adicional, a cidade manterá seus filhos às expensas do Estado até se tornarem adultos. [...] O Estado que garante os maiores prêmios à bravura é também o que conta com os cidadãos mais corajosos”.

A dívida do Estado para com os cidadãos salta aos olhos no discurso do estadista. Não existe democracia sem esse reconhecimento. Ainda mais em situações extremas, como as guerras e as pandemias.

Pouco depois do discurso, a peste avançou sobre a cidade. Os efeitos devastadores da doença são descritos em detalhes por Tucídides, que a contraiu e sobreviveu para contar. Péricles não teve a mesma sorte. E a democracia tampouco.

Os que o substituíram (seu sobrinho Alcibíades, que acabaria conspirando para um golpe, ou o demagogo Cléon) não tinham nem o caráter nem a estatura do estadista. A guerra durou 27 anos e terminou sob o jugo de uma oligarquia espartana.

Jair Bolsonaro fala ao telefone no Palácio da Alvorada, em Brasília, depois de ser diagnosticado com Covid-19 - Evaristo Sá - 8.jul.2020/AFP

Entre nós a pandemia também escancarou um bocado de coisas. Bolsonaro não é Péricles. Homem da dissimulação, retrai-se quando encurralado. Mas é só o tempo de preparar um novo bote nas sombras. Precisa sublevar uma matilha de cães de guarda armados para defendê-lo da lei e das instituições que procura desautorizar, enquanto incita a intolerância nas relações privadas. Os ataques à cidadania são um projeto de governo que se explicita tanto na aversão pelo que é público (saúde, educação, meio ambiente) como no desdém pela morte dos cidadãos. Aliás, uma coisa está ligada à outra.

Valendo-se da impostura retórica de um ideal conservador, o presidente associou a honra à mentira, a coragem à vilania, a amizade às alianças mafiosas, a dignidade à escória. E é sobre essa base de valores invertidos, na qual a justiça é o maior inimigo, que gostaria de impor ao país um modelo de “educação cívico-militar”.

Não há narrativa voluntariosa capaz de dissimular a insistência no embuste. Como se já não bastasse a inépcia e a manipulação no combate à pandemia, o presidente ainda veta a obrigatoriedade do uso de máscaras em igrejas, prisões, no comércio e nas escolas, e nos expõe a uma inesquecível “homenagem” aos mortos, vestindo abrigo esportivo, o arauto do neoliberalismo mumificado a seu lado, enquanto um sanfoneiro (que já havia brindado a nação com suas declarações anais) entoa algo a ver com a “Ave Maria”.

Um amigo compartilhou no grupo de família as imagens de comentaristas da televisão portuguesa a gargalhar depois de assistir ao quadro sinistro. O vídeo provocou uma comoção a esta altura inusitada: indignados, os familiares, eleitores de Bolsonaro, diziam que não era hora de criticar, mas de construir. Sentiram-se pessoalmente ofendidos. Eu entendo.

Bolsonaro nunca escondeu que não veio para construir. Seu governo ficará na história do país como a representação tragicômica do nosso destino funesto nas mãos de medíocres ressentidos, incompetentes e irresponsáveis. Bolsonaro não é Péricles. Sua homenagem aos mortos também não é aos mortos, mas aos otários. As pesquisas dizem que cerca de 30% dos brasileiros o apoiam. E que outros cerca de 20% acham isso aí regular. Os otários somos nós.

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