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Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

Com o brexit, não se sabe quem perderá mais na distância que vai se criar

O mais doloroso, para mim, é a consciência do fracasso de um sonho que estava além da Europa unificada

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Chegamos ao fim do ano.

E, por mais que 2020 nos oferecesse uma nova “diversão” a cada dia ou quase, ou seja, por mais que o ano fosse cheio de distrações, eu não esquecia que o dia chegaria em que o Reino Unido de Inglaterra, Escócia, Irlanda do Norte e País de Gales se separaria da Comunidade Europeia.

Escolho essa nomenclatura completa e um pouco pernóstica como se faz nos lutos grandes e oficiais, quando parece oportuno dizer todos os nomes do ente querido que se separa de nós.

Não sei quem, da Europa ou da Inglaterra, vai perder mais na distância que vai se instaurar. Tampouco sei se a perda deveria ser calculada em moeda sonante, em influência geopolítica ou em capital cultural.

Perdas e ganhos, na história, sempre se calculam numa mistura dos três registros, e ainda estamos longe de ter aquela versão dominante, se não conclusiva, do brexit, que será estabelecida tanto
por historiadores quanto por ficcionistas e documentaristas, de ambos os lados (“Brexit” é um bom título, e aposto que haverá mais de uma série sobre o tópico, no futuro).

Deixando em aberto as apostas no tribunal da história, já posso antecipar que, para mim, concretamente, brexit é e restará o nome de uma grande derrota.

Quando cheguei a Londres, no começo dos anos 1960, já havia no ar um certo espírito europeu: o Tratado de Roma, que instituiu a Comunidade Econômica Europeia, tinha sido assinado em 1957.
Mas, cuidado, somente nos anos 1980 viria o acordo de Schengen, com a ideia da livre circulação das pessoas entre os países da comunidade.

Ser italiano em Londres em 1963 ou 1964 ainda era um exercício de paciência e de humildade. Se você precisasse alugar um apartamento, mesmo num bairro bem popular, Camden Town ou Earl’s Court, por exemplo, um dia ou outro, lendo os classificados, você esbarraria na frase final de um anúncio horrorosamente discriminatório: “no Italians”, ou, então, “Italians don’t need to apply” (italianos nem precisam se aplicar).

O que era? O barulho desnecessário? A fala alta? O excesso de cebola na fritura com a qual de fato deve começar qualquer molho que se respeite? Ou o fim de noite com acompanhamento de violões e
mandolins nostálgicos?

As hipóteses eram todas humilhantes. Tanto mais que, em alguma medida, eu mesmo subscreveria —ou seja, talvez eu mesmo me excluísse do condomínio que admitisse livremente todos os italianos que pedissem…

Aliás, os sentimentos de revolta e de indignação diante da exclusão do próprio grupo da gente sempre são efeitos de uma descoberta simples e dolorosa: nosso próprio grupo nos envergonha.

Enfim, o brexit aconteceu por razões que talvez tivessem pouco ou nada a ver com a aceitação dos italianos “mal criados” —até porque, naquela altura, o objeto de exclusão não eram mais os europeus comunitários mais barulhentos, mas os extracomunitários (ilegais e bem mais barulhentos do que os italianos).

Também as razões da exclusão já não eram tanto a distância cultural quanto os receios de decadência econômica, bem enraizados numa classe C que se sentia ameaçada pela modernização e pela chegada de novos imigrantes de fora da Europa (o filme “Eu, Daniel Blake”, dirigido por Ken Loach e lançado em 2016, retrata adequadamente essa época e esses medos).

Enfim, para mim, o mais doloroso não era e não foi o peso da exclusão, mas a consciência de um fracasso maior, mais amplo: o fracasso de um sonho que estava além da Europa unificada, esse
mundo no qual chegamos a sonhar que se falasse uma língua só (de fato, numa época, falou-se uma língua só, o latim).

Melhor dito, o fracasso de uma cultura que, mesmo no esplendor de sua complexidade, mesmo na melhor prática de sua razão, não conseguiu construir os pressupostos para que houvesse um
dia paz e convivência decente entre seus membros.

É como se fôssemos condenados a descobrir sempre e repetidamente, numa repetição do esforço de Sísifo, que ganhamos, sim, a cada dia (sempre conseguimos empurrar a pedra até lá em cima, nossa cultura não é para menos), mas isso não basta: ainda é preciso saber e talvez merecer viver lá em cima.

A Europa talvez seja isso: uma cultura que nunca consegue estar à altura de si mesma.

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