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Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

O trabalhador chinês é o último estágio humano antes da automação

Todos serão substituídos por robôs que não comem, não sentem e não dormem, só rendem

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Para os que, como eu, irão pular o Carnaval, aconselho assistir a “Indústria Americana”, documentário dirigido por Steven Bognar e Julia Reichert, que recebeu o Oscar 2020 em sua categoria e foi produzido pela Higher Ground Productions, do casal Obama.

Uma fábrica chinesa de vidros automotivos, a Fuyao, abre uma filial em Ohio —estado que sofreu sérias perdas com a globalização da indústria automobilística—, para alívio de uma multidão de desempregados da General Motors, que fechou as portas em 2008.

Logo, porém, o choque entre a mentalidade chinesa de produção e o sindicalismo americano acaba por comprometer o rendimento da empreitada, revelando o abismo intransponível entre as duas culturas.

O filme me fez recuar mais de 20 anos no tempo, até 1997, quando Jiang Zemin, então presidente comunista da República Popular da China, em visita oficial aos Estados Unidos, discursou na universidade Harvard.

Diante de uma plateia pouco amistosa, solidária com a Coalizão pela Liberdade e os Direitos Humanos na Ásia, Zemin afirmou que a China manteve a sua tradição cultural por cinco milênios, enfrentando, em tempos modernos, humilhações e ameaças dos poderes imperialistas, que acabaram por enfraquecê-la.

“Após um século de esforço coletivo, a China se reergueu como um gigante. É o testemunho da força indestrutível do espírito nacional e independente do povo chinês.”

No curto debate que se seguiu, um estudante confrontou o líder, protestando contra a falta de liberdade de expressão e a violação dos direitos humanos em seu país. Exibindo um sorriso quase imperceptível, Zemin respondeu que aquelas eram questões secundárias, diante da necessidade de alimentar 1,2 bilhão de pessoas.

Fez-se um silêncio constrangedor no recinto.

Por meio de um Estado forte e totalitário e de uma lenta abertura econômica, que visou proteger a China do colapso pós-perestroika vivido pelos países do Leste Europeu, a potência asiática não só cumpriu a missão de saciar milhões de bocas, como se transformou na força motriz do crescimento mundial.

Forjados num país populoso, autoritário, fechado e miserável, os operários chineses aprenderam a trabalhar com dedicação sobre-humana, cumprindo jornadas de 12 horas e turnos extras obrigatórios. Sem férias, folga ou descanso, eles enxergam, na fábrica que os emprega, a fonte de sua realização pessoal, profissional e cívica.

Na abertura da festa de fim de ano da Fuyao, na província de Fujian, operários e executivos cantam hinos de louvor ao trabalho, antes de um espetáculo, estrelado pelos funcionários no auditório da empresa, que celebra a ressurreição da China, a qualidade do produto fabricado, os balanços positivos do ano, bem como casamentos coletivos dos empregados.

Comparados aos filhos e netos da revolução cultural de Mao Tsé-tung, os americanos se revelam preguiçosos, relapsos e infantis. “Eles dão muito ouvido às crianças na América”, observa um gerente chinês, numa reunião sobre a baixa rentabilidade da filial de Ohio. “Quando elas crescem, se transformam em adultos carentes, à espera de adulação.”

“Eles parecem máquinas”, retruca uma operária americana, boquiaberta com a eficiência muda dos colegas orientais, capazes de reprimir anseios e suportar a exploração.

O trabalhador chinês é o último estágio humano antes da automação. Em menos de uma década, serão todos substituídos por robôs que não comem, não sentem e não dormem, só rendem.

Num encontro da resistência sindicalista, um americano pasmo confessa que, no último ano, a filha manicure faturou quase o dobro do que ele, empregado da Fuyao.  

O Brasil, mal saído da monocultura feudal, recém-entrado na revolução industrial e ainda distante da automação, já experimenta o gosto desse porvir de desemprego crônico e mercado informal. Por aqui, somos todos manicures.

Enquanto chineses altruístas se imolam pela pátria e americanos choram o fim dos direitos trabalhistas, o brasileiro desalentado, mal qualificado, encontra, nas igrejas neopentecostais, a fé e o sentido que rareiam do lado de fora.

Não à toa, no sábado pré-carnavalesco, enquanto o baticum dos blocos corria solto pelas ruas do Rio, Messias e Crivella saracoteavam no Ano da Unção Dobrada, evento que homenageou os 40 anos da Igreja Internacional da Graça de Deus, reunindo 100 mil fiéis na enseada de Botafogo.

É a volta para o futuro da Idade Média do terceiro milênio.

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