Siga a folha

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

Descrição de chapéu festa junina

'Cultura como direito' não significa que prefeituras devam pagar por shows

Sociedade civil deve forjar sua independência cultural, sem que burocratas escolham o que vamos ouvir na praça

Assinantes podem enviar 5 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Nesta segunda-feira (30), o prefeito do Recife, João Campos (PSB), anunciou o cancelamento dos festejos de São João deste ano. Depois de um fim de semana de intensas chuvas, que geraram mortes e desabrigados em todo o grande Recife, a prefeitura resolveu destinar R$ 15 milhões que seriam gastos nos festejos para incrementar as ações direcionadas às vítimas da chuva.

Fotografia de show durante as festas de São João no Recife - Inaldo Lins/Divulgação Prefeitura do Recife

A polêmica tomou conta das redes sociais pernambucanas. Como em todo debate complexo, há diversos pontos de vista. Entre aqueles a favor do cancelamento, há pessoas verdadeiramente tocadas pela tragédia, que acham que não é hora de festas. E há ainda aquelas que esperam que o dinheiro seja de fato usado para amparar milhares de indivíduos.

Do outro lado, há aquelas que duvidam que os R$ 15 milhões venham a ser gastos na ajuda humanitária. Boa parte dos músicos que tocariam no São João também é crítica a uma medida tão estabanada, ainda mais considerando que há dois anos não há festejos juninos devido à pandemia de Covid-19. E há também aqueles, como o vereador Ivan Moraes, do PSOL, que declarou: "Não acho correto. O orçamento da prefeitura é de cerca de R$ 6 bilhões por ano. Para apoiar quem perdeu tudo não precisa tirar o sustento de quem trabalha na cultura".

Após fortes chuvas e suspensão dos festejos juninos, Recife tem cidadãos desabrigados e desaparecidos - Leo Caldas/Folhapress

A questão é complexa e envolve diversos aspectos. Seja qual for a decisão mais prudente a se tomar, dificilmente uma resolução apressada, tomada em cima da hora, poderia agradar a todos.

Seja como for, o que não se põe em questão é: por que a prefeitura deve bancar a festa de São João? Não se trata de um questionamento referente a este ano, mas à organização e financiamento anual do festejo. Não apenas a Prefeitura do Recife, mas principalmente as de Caruaru (PE) e Campina Grande (PB) vêm investindo ao longo dos anos somas espantosas nas festas juninas. E, como a verba é pública, cabe questionar: por que gastar tanto? Por que um burocrata deveria escolher o que devemos ouvir na praça pública? Cabe ao Estado organizar todos os aspectos de uma festa popular?

Os artistas se acostumaram a tocar bancados por prefeituras no período junino Nordeste afora. Mas não era assim antes dos anos 1980.

As festas de São João de Caruaru e de Campina Grande de antes de meados dos anos 1980, por exemplo, eram organizadas por vizinhos de rua e de bairro, clubes e associações privadas, que montavam "palhoções" em cada esquina da cidade. Estas eram estruturas improvisadas, semiartesanais, quase sempre voltadas para o público geral.

Músicos eram contratados e bancados pelos moradores da região ou por algum clube, associação ou até empresa privada interessada em divulgar sua marca. Os artistas não recebiam da prefeitura, mas da sociedade civil que, articulada, bancava e organizava a festa. Era um São João descentralizado, pujante e animado, construído pela sociedade civil.

Em meados da década de 1980, políticos associados à redemocratização se envolveram na construção de arenas públicas para festas. Em 1986, foi criado o Parque do Povo em Campina Grande. Em Caruaru, a festa foi transferida pela prefeitura para a velha estação de trem, região central da cidade, nessa mesma época. Em 1994, foi criado o Pátio do Forró, imensa área aberta para os shows numa planície perto do centro da cidade. As festas deixaram de ser organizadas pela sociedade civil e passaram a ocupar megaespaços públicos para multidões. E as prefeituras passaram a bancar a festa.

Embora a festa dure quase um mês, o dia 24 de junho é sempre a data mais concorrida. Tornou-se normal esperar das prefeituras a contratação de artistas de fora para celebrar a data de São João. A festa tornou-se centralizada e a sociedade civil foi se alienando dos festejos, que passaram a ser geridos por burocratas municipais.

A cada ano acontecem disputas em torno de quais artistas as prefeituras devem contratar para as festas. Em geral, os artistas do forró eletrônico tendem a ser preferidos pelos burocratas, em desprezo dos artistas do chamado forró pé-de-serra. Os primeiros levam mais público para os palcos principais da festa e, logo, mais capital político aos prefeitos e vereadores que trazem o circo ao povo. Nos últimos 15 anos, artistas sertanejos também vêm sendo contratados a peso de ouro a cada edição. Para o São João de Caruaru deste ano, até o DJ Alok foi contratado.

Mas, como mostramos, nem sempre foi assim. Por isso faz-se necessário pensar outro tipo de festa, uma que seja mais inclusiva e menos centralizada, na qual a sociedade civil se mostre mais articulada e menos refém dos burocratas de cada mandato.

Nesta semana houve uma polêmica em torno do cantor sertanejo Gusttavo Lima, que recebeu um cachê milionário da pequena cidade de Conceição do Mato Dentro, Minas Gerais. Não se tratava de algo ilegal, mas é moralmente correto? É preciso repensar profundamente os métodos de se promover a cultura no país.

Gusttavo Lima faz live para tentar explicar recebimento de dinheiro público em shows contratados por prefeituras - Reprodução/ Instagram

Quase sempre os artistas excluídos acusam os músicos e os gêneros musicais que fazem esses tipos de shows com verbas de prefeituras de "usurparem" verbas públicas. No caso do São João, os forrozeiros do pé-de-serra criticam os forrozeiros eletrônicos. O inimigo é sempre o outro, nunca a prática patrimonialista de se depender do Estado ano após ano.

Um dos argumentos usados pelos defensores das festas públicas bancadas por prefeituras é o de que tais eventos mobilizam toda a cidade. Foi o que disse o cantor Sérgio Reis em recente entrevista a esta Folha: "O prefeito tem que levar alegria para o povo. Uma festa gira dinheiro para o pipoqueiro, o pobre que vende algodão doce, a dona de casa que faz doce caseiro e vende na banquinha na festa".

Mas, se a festa gera tanta renda para a cidade, por que os próprios cidadãos e entidades civis não poderiam se unir para organizar e financiar a festa? É claro que o poder público não pode se eximir de determinadas funções que lhe cabem, por exemplo, segurança, transporte, higiene, saúde e eventualmente até um espaço para as festas. Mas é preciso a prefeitura pagar por shows? Os artistas não poderiam ser contratados pela própria sociedade civil? Uma relação mais sadia entre poder público e a sociedade civil traria mais idoneidade às festas.

E,​ se isso pode ser pensado para as festas dos interiores, poderia envolver também as maiores festas do Brasil. Faz sentido a Prefeitura do Rio de Janeiro pagar milhões todo ano para escolas de samba? É claro, o Carnaval é uma festa que mobiliza a cidade inteira, e alguma participação a prefeitura terá sempre de ter. Mas quem já foi ao Sambódromo já percebeu a grande quantidade de patrocínios da grande festa do Carnaval carioca. A festa no Sambódromo não poderia ser integralmente bancada por patrocinadores, televisões, público e toda a estrutura turística que lucra diretamente com a festa?

Enquanto formos tutelados pelo Estado, incapazes de nos articular para nos organizarmos, continuaremos reféns de burocratas, sempre tentados a tenebrosas transações. A justificativa de que "o povo merece circo" não pode ser o nosso único referencial. A cultura é um direito de todos, está na Constituição. Mas direitos devem ser pensados tendo como contrapartida os deveres. "Cultura como direito" não é sinônimo de que o Estado deva pagar por shows.

Cabe ao Estado criar condições para que a sociedade ganhe autonomia na seara da cultura, sem tutelagem. Cabe à sociedade civil forjar paulatinamente sua independência cultural. Esse objetivo não será atingido através de uma decisão estabanada, como a tomada pela Prefeitura do Recife este ano narrada no início deste texto. Para se forjar uma sociedade civil culturalmente autônoma, é preciso um projeto de longo prazo, pensado de forma complementar e paulatina por governantes e governados. Não seremos verdadeiramente democratas enquanto isso não for uma meta.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas