Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Gustavo Alonso

Lista de livros da Folha para entender o Brasil expõe apartheid musical

Como demonstra o livro 'Eu Não Sou Cachorro, Não', obra de Paulo Cesar de Araújo, elite não leva a sério artistas bregas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Há 20 anos foi publicado "Eu Não Sou Cachorro, Não: Música Popular Cafona e Ditadura Militar", de Paulo Cesar de Araújo. Dividido em 19 inovadores capítulos e com uma instigante introdução, o livro de Araújo é uma aula de Brasil no sentido lato do termo.

"Eu Não Sou Cachorro, Não" é um livro sobre a música cafona do período entre 1968 e 1978, e traça a trajetória de artistas como Odair José, Waldick Soriano, Agnaldo Timóteo, Paulo Sérgio, Nelson Ned, Lindomar Castilho, Evaldo Braga, Fernando Mendes, Carmen Silva, Claudia Barroso, Luiz Ayrão, Benito di Paula, Dom & Ravel, e outros artistas populares entre as classes menos abastadas do país durante a ditadura.

Capa de disco do cantor Odair José pela gravadora Universal - Reprodução

Falando assim, parece ser uma obra que interessa apenas aos fãs do gênero brega, algo sem importância para a música e história do Brasil. Dificilmente um veredicto poderia estar tão errado.

A obra de Araújo é um marco tanto da escrita sobre música quanto sobre a história do país. O baiano mostra como artistas cafonas e seu grande público viveram o período da ditadura e quebra vários mitos, alguns muito fortes ainda hoje.

Um desses mitos é o de que a ditadura atingiu apenas setores que se envolveram na luta armada e na resistência passiva ou ativa contra o regime. Antes da obra de Araújo, a memória sobre essa época ditava que os artistas cafonas teriam sido passivos ou coniventes em relação à ditadura, alienando as massas com suas ingênuas canções durante o período mais repressivo do regime.

Como corolário deste mito, pregava-se que a MPB foi integralmente oposta à ditadura, espécie de válvula de escape libertária contra os generais. Com o passar do tempo, a memória da resistência da MPB foi o que restou do período, passando a figurar em filmes, peças, documentários e livros escolares, tornando-se memória hegemônica.

Contrariando o senso comum, Araújo mostrou como vários cantores da MPB se aproximaram demasiadamente dos ditadores, corroendo o mito idólatra da resistência. Num trabalho minucioso com as fontes, o autor resgatou exemplos de como artistas do quilate de Elis Regina, Paulo Sergio Valle, Zé Keti, Martinho da Vila, Jair Rodrigues, João Nogueira, Nelson Motta, Ivan Lins, Tom Jobim, Jorge Ben e a escola de samba Beija-Flor de Nilópolis, em diversos momentos e por diversas razões, flertaram com os generais.

Sem desconhecer que muitos cantores cafonas estavam alheios às grandes discussões do país, Araújo mostrou em detalhes que suas atuações eram menos políticas, por assim dizer, e mais no campo dos costumes. Não obstante, a caneta da censura pesava sobre eles da mesma forma que pesou sobre qualquer um que criticasse um general.

Espantosamente, "Eu Não Sou Cachorro, Não" mostrou que Odair José foi mais censurado do que Caetano Veloso e Elis Regina. Araújo defendeu a tese que artistas até então vistos como alienados, como Waldick Soriano, Luiz Ayrão e até a dupla Dom & Ravel, também foram tolhidos artisticamente pela vil censura durante os anos de chumbo ditatoriais.

O autor mostrou que, oriundos das classes populares, os cafonas cantaram personagens periféricos que não apareciam na refinada MPB. Odair José compôs homenagem às prostitutas ("Eu vou tirar você desse lugar") e Fernando Mendes fez música para uma moça com deficiência ("Cadeira de Rodas"), por exemplo. Ousado, Agnaldo Timóteo cantou provocativas canções sobre a homossexualidade das boates populares ("Eu, Pecador", "Galeria do Amor"), numa época em que tal prática era chamada de "pederastia" e dava cadeia. Nelson Ned, ridicularizado por seu nanismo e por ser um cantor de bolerões, viveu na pele o desprezo das elites culturais e nunca teve seu sucesso internacional reconhecido no Brasil. Ned chegou até a cantar no Carnegie Hall em Nova York, um dos palcos mais nobres do mundo, sem obter com isso o respeito da crítica.

A grande questão de "Eu Não Sou Cachorro, Não" era entender por que, quando se pensa na música da época da ditadura, esquecemos aquela geração cafona. Nas palavras de Araújo: "Por que o público de classe média universitário associa o período do AI-5 apenas à obra de artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso ou Gonzaguinha? E por que este público geralmente só conhece e canta as canções do repertório da MPB?"

A resposta de Paulo Cesar de Araújo mistura análise social e estética. Grande parte dos críticos, jornalistas, historiadores, sociólogos, músicos, assim como o público que cultiva a memória da MPB, pertence às classes médias e altas, parcela letrada da população, que frequentou os bancos universitários. Num país que convive com o apartheid social, nossa classe média universitária nunca se mostrou íntima da produção brega.

Mais do que um mero problema de classe, o padrão estético de nossa intelectualidade universitária era ancorado naquilo que Araújo batizou de "tradição e modernidade". Por um lado, nossos universitários louvavam gêneros musicais entendidos como "tradicionais", tais como o samba, temas folclóricos e canções tradicionais populares. O outro pé desta equação é a noção de "modernidade", leia-se notadamente o jazz americano e o pop rock inglês, além das conquistas literárias da poesia de vanguarda. A MPB, de extrato universitário, é uma amálgama de "tradição e modernidade".

A produção cafona, quase sempre composta por boleros, canções melodramáticas e baladas açucaradas, era considerada menor pois nunca coube no padrão estético da MPB. Aos olhos das classes médias universitárias, não eram nem "tradição", nem "modernidade". E assim, os cafonas nunca obtiveram o passaporte de entrada na Música Popular Brasileira, em letras maiúsculas, embora sejam músicos muito populares e brasileiríssimos.

Resulta daí a exclusão dos cafonas da história escrita da música brasileira. Com o ocaso do sucesso, muitos artistas desta geração foram esquecidos. Mais grave, foram apagados da história do Brasil. Não figuravam nos livros de história, não eram rememorados em filmes e documentários, nem as gravadoras relançavam seus discos. Num processo de amnésia social, a memória afetiva de milhões de pessoas vinha sendo apagada socialmente. Até o lançamento do livro de Paulo Cesar de Araújo, fruto de sua dissertação de mestrado.

Hoje o autor é mais conhecido pela publicação de uma trilogia biográfica sobre Roberto Carlos. Três obras sobre o rei, explicam-se, pois Paulo Cesar de Araújo teve seu primeiro livro, "Roberto Carlos em Detalhes", lançado em 2006, censurado pelo próprio cantor, o que catalisou uma longa batalha judicial no Brasil.

Capa do livro 'Roberto Carlos em Detalhes', biografia não autorizada do cantor escrita por Paulo Cesar de Araújo - Reprodução

Em seu auge, em 2015, a disputa culminou com o engajamento de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan, Milton Nascimento, Erasmo Carlos e Chico Buarque ao lado de Roberto Carlos pela censura prévia a obras biográficas, num dos maiores micos da história da MPB.

Para afirmar sua luta pela liberdade de expressão, Araújo escreveu o ótimo "O réu e o Rei", publicado em 2014. Este livro antecedeu a vitória dos biógrafos frente aos censores da MPB, sacramentada pela decisão final do STF, o Supremo Tribunal Federal, em 2015.

Sete anos após a vitória, Araújo lançou "Roberto Carlos: Outra Vez – Vol. 1", publicado há poucos meses, que reescreve a biografia censurada, ampliando o nosso conhecimento da música brasileira. Trata-se de uma obra tão completa quanto gostosa de ler. Hoje ele é professor da Pontifícia Universidade Católica, a PUC, carioca e finaliza o segundo volume da biografia sobre o rei Roberto Carlos.

Apesar dos méritos, fato é que a repercussão advinda dos livros sobre Roberto Carlos obscureceu aquela que talvez seja a mais importante obra do autor, o clássico "Eu Não Sou Cachorro, Não". O curioso é que, 20 anos após a publicação do principal livro, a sua tese continue de pé, mesmo depois de tantas mudanças vividas no país ao longo de duas décadas.

No início deste mês, a Folha publicou uma lista de 200 livros importantes da história do Brasil para comemorar o bicentenário da independência. Toda lista é sempre polêmica. Ausências são problemáticas, e a falta de "Eu Não Sou Cachorro, Não" entre eles chama a atenção. Mais trágico ainda é constatar que a tese de Araújo segue válida.

Se analisarmos somente os livros sobre música citados entre os 200 mais, foram lembrados pelo júri convidado pelo jornal: a) a biografia de Carmen Miranda escrita por Ruy Castro, "Carmen"; b) a autobiografia de Caetano Veloso, "Verdade Tropical"; c) "Dicionário da História Social do Samba", de Nei Lopes e Luiz Simas; d) o "Songbook" de Tom Jobim, conjunto de partituras do maestro organizadas por Almir Chediak; e) "Sobrevivendo no Inferno", publicação das letras do álbum de 1997 dos Racionais MCs; f) "Do Modernismo à Bossa Nova", de Jommard Muniz de Britto.

A "tradição" da MPB foi lembrada pelo júri oriundo das classes letradas universitárias. Os jurados coroaram obras que tematizam o samba, seja no dicionário do gênero, seja na obra biográfica sobre Carmen Miranda. A modernidade entrou com a bossa nova de Tom Jobim e o tropicalismo de Caetano. O rap dos Racionais MCs, que já há algum tempo seduz nossa intelectualidade identitária, entrou devido à grande inovação desta lista: a incorporação da pauta racial e de gênero. Mas o identitarismo não mudou o cenário geral.

Se nos restringirmos à lista produzida pela Folha, chamada de "200 livros para entender o Brasil", vivemos no país do samba, da bossa nova, do tropicalismo e do rap. E só. Seguimos sem entender o país que canta sertanejo, dança axé, rebola com o funk e idolatra o pagode.

A lista ilustra bem o gosto médio de nossas classes médias intelectualizadas de formação universitária. E é símbolo do apartheid musical brasileiro denunciado em "Eu Não Sou Cachorro, Não".

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.