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Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

Em 2020, siga a moda do Vale do Silício e adote o jejum dopaminérgico

Dieta prevê redução do tempo gasto com prazeres desnecessários

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Você é constantemente seduzido por algo sem muita importância, que lhe afasta de suas metas? Sim? Que tal um jejum diferente para 2020? Siga a moda do Vale do Silício, a capital mundial da tecnologia, e adote o jejum dopaminérgico. Ou seja: reduza o tempo gasto com prazeres desnecessários. Se esses já te capturaram, saiba que a culpa está na dopamina, o neurotransmissor do júbilo.

Vitórias em jogos, alimentos calóricos e interações em redes sociais fazem seu cérebro abrir muitos estoques dopaminérgicos. Essa é a explicação bioquímica do prazer que tais práticas provocam em sua mente. Mas a dopamina também o condiciona a ficar ávido por desfrutes, o que faz você sucumbir a eles repetitivamente. Agora que você já sabe tudo, retome imediatamente o controle de sua vida! Tenha finalmente um antídoto natural contra maus hábitos e vícios. Comece já a seguir algumas dicas do jejum dopaminérgico.

Para não mais ansiar por novas mensagens que aparecem em seu celular, coloque-o em um lugar de difícil alcance. Para resistir ao bolo açucarado, faça algo incompatível com a gula. Por exemplo, exercite-se. Para deixar de gastar tempo em sites inúteis, instale um programa de bloqueio que seja complicado de ser desativado.

A dieta dopaminérgica indica evitar jogos, alimentos calóricos e interações em redes sociais - Fotolia

Seguindo esses conselhos, ocorrerão menos cargas de dopamina liberadas em suas sinapses cerebrais. Portanto, o jejum levará seu cérebro a outro estado, para uma nova forma de funcionar à parte dos reforços bioquímicos que valorizam atitudes nem sempre, favoráveis.

O que eu escrevi até aqui foi um compilado das teorias de Cameron Sepah, psicólogo e professor da Universidade Califórnia em San Francisco. Foi ele quem cunhou o termo “jejum dopaminérgico”. O docente diz até que suas preposições foram ratificadas por uma pesquisa conduzida pelo economista Roberto Mosquera, publicada em setembro deste ano.

Mosquera demonstrou que estudantes se sentiram menos entristecidos, reconheciam menos notícias distorcidas e se engajaram mais em atividades saudáveis ao se desconectarem do Facebook por uma semana. No entanto, o psicólogo omitiu que o economista pagou para os estudantes participarem do estudo. E receber dinheiro dá prazer, sem nenhuma economia de dopamina...

Além disso, com exceção do criativo nome “jejum dopaminérgico”, Cameron não é original. Longe disso: o psicólogo recorreu às reconhecidíssimas técnicas da terapia cognitivo-comportamental para fazer suas propostas. Outro agravante é que nem tudo que ele propaga talvez tenha relação com a dopamina.

A despeito destas inconsistências, o jejum dopaminérgico virou hit no Vale do Silício. Talvez por ter um nome charmoso, talvez por vir maquiado de hipóteses bioquímicas. Ou, quem sabe, porque a história da humanidade está repleta de indivíduos que buscaram a purificação através da abstinência, e esse traço humano antigo então ganhou a oportunidade de se atualizar, com todas as suposições embutidas em torno do jejum de dopamina.

Entretanto, os conceitos iniciais se distanciaram de Cameron e da terapia cognitivo-comportamental. Para piorar, foram exagerados e distorcidos. Como consequência, virou sinônimo de jejuns extremos em que adeptos reduzem contatos com tecnologia, luz artificial, comida, bebida, conversas e até mesmo com o olhar de outros — essencialmente, qualquer coisa que possa ser estimulante.

Tudo isso obedece à inadequada justificativa de não expor o cérebro à dopamina. Assim, os neurônios encefálicos se desacostumariam com esse neurotransmissor e, em outra oportunidade após o jejum, a dopamina traria mais prazer, permitindo que experiências singelas antes negligenciadas possam, finalmente, trazer um regozijo verdadeiro.

É como se sentir menos trouxesse mais felicidade, uma premissa ingênua de que o cérebro pode se portar como um computador, ou seja, ser otimizado e, em caso de pane, voltar a funcionar normalmente ao ser desligado e religado.

Mas o cérebro não é uma máquina.

Referências: https://www.sciencealert.com/dopamine-fasting-is-silicon-valley-s-latest-trend-here-s-what-an-expert-has-to-say https://medium.com/swlh/dopamine-fasting-2-0-the-hot-silicon-valley-trend-7c4dc3ba2213 https://www.nytimes.com/2019/11/07/style/dopamine-fasting.html https://link.springer.com/article/10.1007%2Fs10683-019-09625-y

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