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Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Descrição de chapéu alimentação

Resoluções de Ano-Novo funcionam bem quando não precisamos delas

Parei de comer carne vermelha porque fui parando e, quando vi, preferia comer frango, até peixe, quem sabe

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Nunca levei muito a sério minhas promessas para o novo ano. Bem que eu tento, mas acho que a melhor abordagem é ir administrando as coisas de mansinho.

É uma grande frustração verificar que uma dieta sem carboidratos extinguiu-se depois de 15 dias; o fracasso moral traz prejuízos maiores, sem dúvida, do que os benefícios obtido pelo breve período de redução calórica.

Alimentos permitidos em uma dieta com baixo teor de carboidratos - ricka_kinamoto - stock.adobe.com

Confuso, o corpo deixará de acreditar em você; a alma, essa, já tinha razões de sobra para a desconfiança. Mas foram boas as resoluções que tomei, não digo sem pensar, mas sem saber quando. Cortar o açúcar no café, por exemplo. Ou, aí me lembro bem, juntar um pouco de leite desnatado à xícara gigantesca e preta —isso foi depois de uma violenta crise de acidez estomacal.

Na mesma linha, os refrigerantes, mesmo diet, foram se extinguindo aos poucos. É sabido que fazem mal a quem tem problemas de refluxo. Se tivesse decretado que não iria consumi-los nunca mais, qualquer infração se tornaria o precedente para muitas outras.

"Perdido uma vez, perdido sempre." Não; o superego precisa ser enganado. Se lhe dermos o direito de legislar, a nossa democracia interior se desestabiliza. Surgem as revoltas violentas, os atos de desobediência civil, as birras, os processos penais e as condenações.

Meio sem perceber, criei o hábito de treinar uma hora ou duas, diariamente, no piano. Como é um instrumento eletrônico, posso usar fones de ouvido e me exercitar durante a noite. Mas sem hora marcada, quase que sem objetivos concretos, e sem drama quando não compareço.

Depois de muita insistência familiar e médica, e depois de anos de insubmissão, passei a usar sempre o filtro solar, faça chuva ou faça sol, saindo de casa ou não. Esqueci o momento em que isso começou; só sei que, 90% das vezes, começo o dia besuntado e feliz.

Já é um dever cumprido, antes mesmo de pensar no que tenho de verdade para fazer —e no que não garanto que vou.

Uma página de conselhos que li recentemente recomenda, com razão, que deixemos de lado a lista das tarefas a cumprir. E que pensemos, em troca, na quantidade de coisas que conseguimos fazer ao longo do dia anterior. Não levei o carro para a revisão, mas passeei com o cachorro. Ou: não passeei com o cachorro, mas levei o carro para a revisão.

Na verdade, tudo isso se resume a um simples verbo: vivi. Cuidei da vida. Não por acaso, comemoramos a noite do Réveillon com a queima de fogos, sem pensar nas resoluções que deixamos de cumprir.

A festa não assinala as cruzinhas e traços que ticamos a cada linha de nossa planilha de projetos. Sem contabilidade nem culpa, as luzes se abrem para todos os lados, flores breves de desperdício no meio da noite.

A lista ressurge com o peso, ou o otimismo, da manhã.

Insisto: melhor pensar no que já foi feito, ou na resolução que, só com um pouquinho mais de cuidado, poderá facilmente se cumprir.

Vejo que, aos poucos, estou abandonando o consumo de carne vermelha. É o que recomendam os ambientalistas e o que se impõe com o aquecimento global. Mas não foi por isso. De resto, se fosse por isso, seria um pouco ridículo.

Ilustração publicada em 4 de janeiro - André Stefanini

Não acredito nessa coisa de que problemas se resolvem "se todo mundo fizer a sua parte". Se eu fizer a minha, e os outros não, serei mártir, moralista ou otário, mas estarei salvando pouquíssima coisa.

Muito engraçado usar esse condicional: "se todo mundo…". Alguém perguntou a esse "todo mundo" se vai participar da campanha? A vontade geral, para lembrar Rousseau, não nasce da soma de vontades enfiadas no seu isolamento, agindo cada uma por si.

Parei de comer carne vermelha porque… fui parando. Quando vejo, prefiro frango, até peixe, quem sabe. Parei, mas não parei totalmente. Foi o que eu quis, não o que resolvi. Melhores ainda são as resoluções que nem precisei tomar. Noticia-se que o abacate é sério inimigo da ecologia; sua pegada de carbono, dizem, impõe respeito a um bezerro de tamanho médio.

Suprimir o abacate? Eis uma atitude que não preciso tomar. Entre meus muitos erros, não se inclui o gosto por essa substância, que da fruta não tem o caldo, nem do legume a fibra. Coisa pastosa e dúbia, sem a honestidade da banana, a vida da pitanga, a feiura da jaca, a dignidade triste do figo, os olhares traiçoeiros da uva, o tédio sensato da maçã, a alma benigna do mamão.

Está resolvido. Passo o ano sem abacate e considero meu dever cumprido.

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