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Autora de "Mulher Feita e Outros Contos" e "As Mulheres de Tijucopapo". Mantém o site marilenefelinto.com.br

Branquitude que erra

Jovens pretos preferem buscar em intelectuais pretos conhecimento sobre a luta contra o racismo

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Dou a palavra aqui a dois afro-brasileiros jovens, de pele preta (evitam a palavra “negro”), sobre um artigo recente nesta Folha (da antropóloga branca Lilia Schwarcz), que discorria sobre um lançamento da cantora americana e preta Beyoncé.

“É a cara da antropologia brasileira”, comentou Danê Sosaba, 31, tradutor, ex-estudante de sociologia, condenando o texto e o debate. Sosaba, que fez seu aprendizado de militância antirracista na organização jovem Ujima Povo Preto, lê Assata Shakur, Patrice Lumumba, Marcus Garvey, Frantz Fanon...

Esses os nomes de teóricos do racismo —todos africanos ou afrodescendentes— que interessam a Sosaba e à Ujima Povo Preto, uma “organização PanAfricana autônoma, voltada para o povo preto em prol da unidade, fortalecimento e autonomia da comunidade Afrikana”.

A estudante de sociologia Natália Oliveira, 27, também militante de pele preta, já formada em publicidade e propaganda e que trabalha como líder de recrutamento (“recruitment leader”, como se diz hoje no mercado, equivalente ao antigo “headhunter”), aprofunda a crítica ao texto da antropóloga:

“Ela escolheu referenciar a análise com uma série de conceitos e autores ocidentais [Shakespeare, Drummond de Andrade], quando existem conceitos e autores africanos para embasar a crítica. Entre tantas outras coisas, Beyoncé está relendo a mitologia dos orixás. Quem colocou Hamlet no meio foi a acadêmica. O que evidencia o epistemicídio da cultura africana. No que se refere a lugar de fala, não acho que ela não deveria ter escrito sobre Beyoncé, mas que poderia ter feito pesquisa menos preguiçosa e malfeita.”

Natália se posiciona sobre o conceito de lugar de fala: “Poderia ser usado para criticar o jornal, que escolheu publicar uma historiadora branca, diante da variedade de historiadores pretos (que seriam mais felizes até mesmo ao fazer possíveis reprovações). [...] O que a acadêmica chama de glamorização pode ser lido como um resgate da história africana, que foi abundância e riqueza antes de ser dizimada e extirpada de nós. Essa é a mensagem que Beyoncé se compromete a passar: ‘Algo nos foi tirado, nosso povo foi subjugado, sujeitado, mas existe uma outra história’”.

Jurei que não ia abrir este meu espaço para dar cartaz a quem já tem tudo a seu favor: eruditos tão consagrados como Schwarcz já têm a mídia corporativa a seu favor, o mercado editorial, as feiras de livros, a universidade (e o apoio de seus pares brancos, que saíram instantaneamente em sua defesa) brasileira e estrangeira. Dominam a cena cultural de ponta a ponta.

Jurei, mas reconsiderei, ao ler o que me parece o pior do texto da historiadora: quando ela diz, numa generalização canhestra, que duvida “que jovens se reconheçam no lado didático dessa história de retorno a um mundo encantado e glamorizado, com muito figurino de oncinha e leopardo, brilho e cristal”.

Que jovens? Que onças? Resposta dada aqui por jovens pretos de uma nova geração que (para conseguir respirar!), se não ignora a academia branca, prefere buscar em intelectuais pretos conhecimento sobre a história e a luta contra o racismo e o capitalismo que os oprimem.

No pedido de desculpas pelo artigo, Schwarcz culpa o jornal por uma suposta escolha equivocada do título do artigo. Ora. O ponto é bem outro: o que leva uma acadêmica tão poderosamente renomada a escrever num jornal sobre uma popstar americana? Para quê? Para autopromoção não será, pois ela não precisa disso.

A antropóloga deve saber que o jornalismo não vive de notícia há muito tempo. O título de um artigo será aquele que melhor venda o tema, e não aquele que seja fiel ao texto. Também não é novidade que o jornalismo atual vive do que afirmam as “personalidades” ou os “especialistas” (inclusive ela) creditados pela classe dominante branca, dona dos meios de comunicação. Trata-se mesmo do jornalismo do excesso opinativo: afinal, o que é o acúmulo de centenas de nomes e fotos divulgando colunistas num site noticioso? Quem é quem naquele bolo amorfo de opiniões? Quem é confiável?

O que ocorreu com a antropóloga foi que, na sua branquitude, errou, atravessou a porta de vidro: não viu, não se viu. Meteu as caras e fez voar estilhaço para todo lado. Melhor definição para quando uma pessoa de pele branca descobre os equívocos de sua branquitude (ou seja, de sua consciência ou semiconsciência de lugar social privilegiado, de opressor branco) é esta de Edith Piza, citada aqui por Lourenço Cardoso:

“[...] Para Edith Piza, quando o branco se defronta com sua própria branquitude causa-lhe um grande impacto, semelhante a uma pessoa desavisada que se choca com uma porta de vidro”.

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