Siga a folha

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

Chico e Caetano, Marx e Engels, Jesus e Judas compõem duplas dialéticas

Na arte, na política ou na religião, há pares cujas partes se entreolham, convergem, divergem ou agem em paralelo

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Pena que, na torrente de livros em torno do centenário da Semana de Arte Moderna, não tenha saído nenhum sobre os nexos entre Mario e Oswald de Andrade. Eles brigaram feio. Mas a literatura de um fala à do outro, estão interconectadas. Juntas, compõem um mural da época.

Na arte, na política e na ficção, há pares cujas partes se entreolham. Convergem, divergem ou agem em paralelo. Um não seria o mesmo se não fosse o outro. Suas obras estelares compõem uma constelação. A seguir, algumas dessas duplas dialéticas.

Chico e Caetano. Um é épico e o outro, mítico. Chico fala da história de um povo. Suas canções fazem a crítica da crônica nacional —da ditadura às diretas, da miséria às milícias. Anseiam por um futuro que pulsa no passado: vai passar nessa avenida um samba popular. Caetano vê víboras do fundo do poço, mas o seu Brasil resplandece: uma criança sorridente, feia e morta estenda a mão, mas é lindo ver o leãozinho entrar no mar. Na hora da angústia coletiva e individual (anos 1960, agora), o épico e mítico se entrelaçam, Chico e Caetano cantam em uníssono contra a força bruta, auguram uma realidade menos mórbida.

Ilustração publicada em 11 de fevereiro - Bruna Barros

Zorro e Tonto. Tese: Zorro é senhor. Antítese: Tonto é servo. Negação da negação, síntese: Tonto pergunta a Zorro "nós quem, cara-pálida?".

Davi e Golias. O filisteu que media 2,90 metros (Samuel 1: 17) estava vergado pelo peso de suas armas. O jovem pastor hebreu, escolado na proteção de suas ovelhas dos ataques de leões e ursos, acertou-lhe em cheio uma estilingada na testa. Davi saqueou vilas filisteias e decapitou Golias. Moral da história: vence (e não perdoa) aquele que maneja bem sua arma.

Marx e Engels. Como nunca houve "engelismo", Marx foi o corpo —na abrangência filosófica e na escrita. Mas Engels foi bem mais que sua sombra: um amigo e crítico de todas as horas. Inclusive no materialismo comezinho, o de lhe garantir a sobrevivência e a sobrevida.

O Gordo e o Magro. Acostumaram milhões de espectadores à pancadaria mecânica e humilhante dos filmes de pastelão. Talvez por isso tenham sido admirados por Samuel Beckett e Harold Pinter, poetas do sem sentido.

Quixote e Sancho Pança. O cavaleiro da triste figura era doido, mas talvez nem tanto quanto seu escudeiro, segundo Cervantes, "um homem de bem com pouco sal na moleira". Quem é ingênuo: o delirante que crê no que fantasia, ou o realista que acredita no patrão? Na aurora do século 17, a dobradinha inaugurou um gênero, o romance, que até hoje é povoado por personagens díspares, às turras com moinhos de vento.

Tom e Jerry. O gato, bicho de veludo e silêncio, virou um neurótico hiperativo, Tom. O rato, animal imundo, tornou-se um espertinho podre, Jerry. Assim se ensina a petizada a agir com má-fé e brutalidade.

Bernini e Borromini. Sem os dois arquitetos, que se odiavam, a Roma barroca não existiria. Ao falar do antípoda, Bernini disse: "Acho menos ruim ser um mau católico do que um bom herege". Isso porque Borromini contraía o espaço, reduzindo-o ao tamanho da sua alma, como na igreja de San Carlo. Já Bernini alargava-o, monumentalizava a retórica católica, como na Praça de São Pedro. Este era um homem do poder que se expande. Aquele, um ensimesmado em busca da sua salvação.

Lennon e McCartney. A parceria, que começou em 1962 e gerou 180 canções, terminou devido à politização de Lennon nas labaredas de 1968. Com a sua morte, e a da rebeldia, McCartney afundou-se
em tolas toadas pop
. A inquietação de "Revolution 9" foi sepultada. Assim como 1968.

Lênin e Trótski. Como vencer a burguesia numa vaga revolucionária? Lênin sabia: com um partido de combate, o bolchevique. O povo russo sabia mais: com conselhos de trabalhadores, sovietes. Como derrotar a reação e manter o poder? Trótski sabia: militarizando o operariado e internacionalizando a revolução. Como construir o socialismo mantendo a democracia? Como a dupla pouco sabia, a casta burocrática se encastelou no partido. Seu líder, Stálin, pôde então superar Lênin e Trótski, matando os bolcheviques e sufocando os sovietes.

Judas e Jesus. Em "Três Versões de Judas", Borges reinterpretou João (1:10), que afirmou: "No mundo ele estava e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu". No conto, um teólogo argumenta que, ao se fazer carne, o Verbo rebaixou-se a ser o último dos homens, o traidor abjeto que delata em troca de 30 dinheiros. Foi como Judas que Deus desceu à Terra e —Hosana!— redimiu a humanidade.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas