Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Descrição de chapéu Semana de 1922

Oswald de Andrade sai da cova e sofre com dívidas em 'Diário Confessional'

Livro é uma confissão pungente e aguda de um homem que tem, como escreve, 'a cabeça baixa dos que não têm aonde ir'

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"Sou o maior! O maior dos desgraçados! Fizeram de mim um homem que, para ir ao Rio, precisa acalmar 13 bancos e casas bancárias. Pulei alto demais e não sei onde cairei. Talvez eu morra afogado no meu rio interior. É Quinta-Feira Santa. Antigamente, o espetáculo da morte de Cristo se apossava da gente. Hoje, faço as unhas das mãos e dos pés."

As sentenças acima são do "Diário Confessional" que Oswald de Andrade escreveu entre 1948 e 1954. Morreu meses depois, aos 64 anos (Companhia das Letras, 581 págs.).

Ilustração representando um quadro de Oswald de Andrade recortado na altura do rosto do artista, que está pendido para a esquerda
Ilustração publicada em 4 de fevereiro de 2022 - Bruna Barros

Exceto por uns poucos trechos, ele permaneceu inédito até que Marília, a filha mais moça do escritor, o entregou a Manuel da Costa Pinto, que o organizou e editou. Eis a seguir outra montagem de frases dele:

"Estou completamente escangalhado. Medo de morrer. Está um dia de defunto sair da cova. Quando esperas a glória, vem o oficial de justiça. É a escritura que se eterniza, o avanço dos credores, a falta de dinheiro, a saúde. É tamanha a baralhada dos negócios que a gente não sabe se ri ou se chora. Muitos Judas e nenhuma ceia. O sentimento de acabar me domina."

O "Diário" tem ideias artísticas e comentários culturais. Mas é bem mais que isso. Ele estende no varal retalhos de alguém que se sente "esfolado vivo". Escreve que "a vida é uma calamidade a prestações".
Passam-se uns meses e pergunta: "Quando vireis, euforias?".

Não virão nunca. Oswald, que fora um dos homens mais ricos de São Paulo, no fim da vida só tem dívidas. Acha-se responsável pelo sustento de 11 familiares. Teoriza a respeito de uma utopia matriarcal, mas se vê na prática como um patriarca que tudo provê.

Passa os dias pedindo empréstimos ou protelando o seu pagamento. Às voltas com hipotecas e promissórias. Mendigando favores a Ademar de Barros, a Getúlio Vargas, a agiotas, credores, banqueiros. Está com o aluguel atrasado há três meses. A filha e a mulher precisam de meias, e não tem dinheiro para comprá-las.

Peripatético, está sempre em trânsito —de avião, trem ou de carro. Vai ao Rio, a Minas, ao interior paulista. Planeja ir à Amazônia, à Suécia, brinca com a ideia de ganhar o Nobel. Quer abarcar o mundo. Mas não tem como sair de si. Escreve:

"Detesto tudo. Vomito a gente que me cerca. Uma fria loucura roça minha fronte. O gelado interesse me fita. Sorver hora a hora o fel venenoso da vida. No triste e chuvoso dia paulista, sofro como um cão. A derrota do Fluminense: e eu com isso? Vida de merda! Hoje, almoço da família. Ontem, ceia da família. Sobra isso. O resto é doença e miséria."

O "Diário" traz um Oswald insuspeitado, o pai e marido amantíssimo, terno com os filhos e Maria Antonieta D’Alkmin, sua mulher. Traz também o intelectual de curiosidade irrefreável. O que lê Kafka e
Heidegger, Sartre e Graciliano, Camus e Corção, Josué de Castro e Freud.

Traz ainda, aos borbotões, o Oswald arreliento, o hilário, o opiniático que ataca os colegas de ofício sem meias palavras —e às vezes os elogia logo em seguida. Ele não é, contudo, o mais importante. Até porque não sabia se publicaria o "Diário".

Um dia, escreve que ele "precisa ser completamente remanipulado, reescrito. Senão, não tem sentido nenhum". Noutro, ao relê-lo, tem vontade de chorar. Mas Maria D’Alkmin diz, ao folheá-lo, que nele se
ouve "a voz" de Oswald.

Por "voz" entenda-se, talvez, a concisão, os cortes abruptos, o contraste entre o concreto e o abstrato, o primitivo e o contemporâneo, suas grandiosas aspirações e a tacanha realidade, o que é e o que poderia ser.

Não é uma arte que atinja as alturas de "Memórias Sentimentais de João Miramar", "Serafim Ponte Grande" e "Pau-Brasil", everestes numa literatura de poucos picos. É a confissão pungente e aguda de um homem que tem, como escreve, "a cabeça baixa dos que não têm aonde ir".

Ele está ciente da riqueza que teve, dissipou, e o que deve fazer agora. Como neste parágrafo:

"Não acredito na derrocada imediata do capitalismo entre nós e por isso, através dum desenvolvimento penoso e longo de economia herdada, procuro de qualquer modo transmitir aos meus alguma coisa que deixaram os velhos queridos. É essa a chave sentimental da minha luta capitalista."

Oswald de Andrade parece resignado. Contudo, se rebela contra o mundo:

"Nesse mundo de cartas marcadas, onde li um anúncio —‘Só há duas soluções: herdar ou ganhar na loteria’— verifica-se uma terceira: o jogo bruto, o esquecimento de escrúpulos, o roubo cru. É preciso acabar com esse mundo de cartas marcadas."

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