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Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

No embate entre Lula e Bolsonaro, imagine quem é Davi e quem é Golias

Escultores de diferentes períodos históricos expressaram seus ideais através do duelo bíblico entre dois homens

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Três estátuas fenomenais, inspiradas no Antigo Testamento, mostram o triunfo de Davi sobre Golias. Pelo relato bíblico, o gigante filisteu propôs aos hebreus que, em vez de guerrearem todos, só ele e um oponente lutassem. Quem matasse o adversário subjugaria o povo inimigo.

Golias desceu para o campo de batalha com um escudeiro. Media 2,20 metros. Vestia uma couraça de bronze de 60 quilos. Estava de capacete e calçava botas metálicas. Levava dardo, espada, lança. Segundo as escrituras, era um "campeão". Ao vê-lo, os hebreus foram "tomados de pavor".

Ilustração publicada em 15 de julho - Bruna Barros

Davi nem combater podia, por ser demasiado jovem para se alistar. Era um pastor ruivo de "gentil aspecto". Foi olhado com desdém pelo rei Saul ao se dispor a enfrentar o incircunciso. O garoto explicou ao soberano que destroçava as feras que buscavam abocanhar-lhe as ovelhas.

"O Senhor, que me livrou das garras do leão e do urso, me livrará da mão desse filisteu", falou ele ao rei. Então disse Saul a Davi: "Vai, e o Senhor esteja contigo".

Davi vestiu a armadura real, pôs o elmo de bronze na cabeça e cingiu a espada. Mas não estava acostumado a tanto peso e se despiu. Marchou rumo a Golias com o cajado, cinco pedras lisas no alforje e a atiradeira.

Ao ver que o adversário era um "mancebo", o gentio ameaçou: "Darei a tua carne às aves do céu e às bestas do campo". Davi atirou-lhe uma pedra que —pimba!— pegou bem no meio da testa.

Golias caiu de cara no chão. O pastor tomou-lhe a espada e o decapitou. Os filisteus fugiram em polvorosa. Quando Saul morreu, Davi foi coroado rei de Israel.

As três esculturas famosas de Davi foram feitas ao longo de quase dois séculos. A primeira é de Donatello, de 1440: um bronze de 1,58 metro que está no Bargello, em Florença. Foi a primeira estátua de alguém nu desde a Antiguidade grega, mil anos antes.

'Davi' esculpido pelo artista italiano Donatello - Wikipedia

Ela mostra o efebo longilíneo e de chapéu com louros. Como a cabeça de Golias está a seus pés, a briga acabou há pouco. A magreza do hebreu contrasta com a cabeçorra do filisteu —sinal da superioridade da inteligência, da vitória da astúcia sobre a força bruta.

A segunda escultura, de 1504, é um mármore de Michelangelo que também está em Florença, na Academia. Nu da cabeça aos pés, com mais de cinco metros, esse Davi é admirado pela harmonia anatômica. Que não é impecável: a mão direita é maior que a esquerda.

A distorção tem razão de ser porque o herói hebreu é mostrado antes de apedrejar Golias. Daí as veias saltadas da mão direita que se contrai. O olhar tenso e o semblante aflito são de alguém que pondera, prepara-se para agir. É com esses detalhes que Michelangelo celebra a observação atenta e o raciocínio.

A terceira estátua, também de mármore, foi talhada por Bernini em 1624. Tem tamanho natural (1,70 metro) e está na Vila Borghese, em Roma. Ela abandona a tranquilidade apolínea das duas abordagens renascentistas que a antecederam e entra com tudo no tumulto barroco.

Davi está no meio da refrega. Em ponto de bala, tem o torso torcido e gestos eloquentes. Momentos antes de mandar pedra em Golias, morde os lábios com força e fúria. O mármore se move para demonstrar a preponderância da ação sobre a razão. Na hora do vamo-vê, o que conta é o ato.

O primeiro biógrafo de Bernini, seu filho Pier Filippo, escreveu que ele se olhava no espelho ao esculpir o rosto do pastor audaz. Biógrafos posteriores acrescentaram que quem segurava o espelho era o cardeal Maffeo Barberini, em vias de ser eleito papa com o nome de Urbano 8º.

'Davi' esculpido por Gian Lorenzo Bernini em 1623 - Wikipedia

No ótimo "Bernini and His World" (Lund Humphries, 288 págs.), lançado no início do ano, Livio Pestilli diz que tais versões são falsas. Um potentado cinquentão da corte romana não iria se meter num estúdio, cheio de pó de mármore, para servir de assistente a um escultor de 25 anos.

Em qualquer versão, contudo, o tempestuoso Bernini viu a si mesmo como Davi. Assim como Donatello e Michelangelo, gays, talvez tenham posto algo de si nos seus Davis —que, para vários estudiosos, exaltam o corpo masculino.

A subjetividade importa, seja de um fariseu colossal, um pastor judeu, artistas do Renascimento ou do Barroco. Sobretudo porque eles representam algo maior: uma crença, uma nação, uma estética. Fica aqui então um desafio à imaginação da leitora. Não é preciso Bíblia nem estátuas.

Em vez de milhões de brasileiros se trucidarem, seria melhor que só dois duelassem. No embate entre Lula e Bolsonaro, no homem contra homem, imagine quem é Davi e quem é Golias.

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