Apinhado de fatos e mexericos, "Os Doze Césares", de Suetônio, é um clássico da fofocaiada do poder. Tendo vivido há quase dois milênios, seu autor é um dos patronos do jornalismo político. Ave, Suetônio.
Começando na passagem da República para o Império, e indo de Julio César a Domiciano, ele fez a biografia de uma dúzia de autocratas romanos. Foi uma época épica, de guerras civis e imperialistas, asnos e heróis, esbórnia e luxúria, de porneia pagã e carolice cristã.
O recém-publicado "Doze Césares", de Mary Beard (Todavia, 462 págs.), revolve o mesmo barro humano, mas vai noutro sentido: investiga como a imagem dos maiorais romanos foi criada, fecundou e afeta a maneira de encarar os políticos. Ave, Mary Beard.
A historiadora inglesa merece ser saudada por ser uma classicista de mão cheia. Com erudição superlativa —metade do livro é de ilustrações, apêndices, notas e bibliografia— e escrita lisa, ela atravessa séculos atulhados por milhares de bustos, medalhas e telas. A danada sabe tudo.
Seu livro abate mitos, reinventa verdades e, quando é impossível concluir, ela afirma: não vou dar um chute. Não é à toa que seja campeã da venda de livros e podcasts, palestrante ilustre e chamariz de audiência da BBC.
"César" era o sobrenome de Julio, o primeiro dos 12 varões de Suetônio. Virou título honorífico dos descendentes e sucessores —e czar em russo, e kaiser em alemão— pelo atrevimento golpista: "Vim, vi, venci".
Se o putsch de Bolsonaro triunfar, portanto, todo cuidado é nulo, pois os próximos presidentes serão Bananinha, Carluxo, Flavio Rachadão e eteceteras. A perder de vista e por décadas afora.
Suetônio conta que Julio César era alto, claro, tinha olhos escuros, barba raspada e se depilava. Para seu azar, não lhe cresciam pelos onde mais queria, a cabeça. Para o historiador, como "a calvície o expunha a zombarias da oposição, penteava o pouco cabelo que tinha do cocoruto para frente".
Bolsonaro aduba uma meia franja que disfarça o testão glabro, e talvez os chifres. Pinta o cabelo, mas agora deixa um tufo branco acima das orelhas para não dar na vista. É um marrento que cuida mais do cabelo que do país.
Sabendo do seu Saara capilar, o centrão romano aprovou no Senado um decreto que autorizou Julio César a usar a coroa de louros, tantas foram suas vitórias. Era para dissimular a careca, atesta Suetônio. Arthur Lira não pensou no decreto calvo-áulico. Por enquanto.
Mary Beard diz que as imagens dos césares precedem o livro de Suetônio. As figuras apareciam antes em moedas, que os imperadores cunhavam para mascarar a inflação e ludibriar a plebe. Apareciam em estátuas, que eles mandavam esculpir para difundir sua fama infame.
Apareciam também em sarcófagos, que véios da Havan e chefões do Bradesco faziam para adular os césares e impingi-los à posteridade. Quanto mais o tempo passou, porém, aumentou a chance de o puxa saquismo ser um tiro pela culatra.
Isso ocorreu com Letícia Bonaparte, mãe de Napoleão, e Andrew Jackson, presidente americano. A mamãe corsa encomendou uma estátua de si mesma a Antonio Canova, artista sublime. Ele deu ao rosto de Letícia as feições de Agripina, da família imperial romana.
Havia, todavia, duas Agripinas, a virtuosa e a vilã, ambas casadas com imperadores. A primeira foi torturada, exilada e morta. A outra assassinou o marido com cogumelos envenenados e fornicou com o filho. Não se sabe qual delas o escultor copiou.
Tanto faz porque ambas pariram monstros. Uma, Calígula, o demente que se achava deus. A outra, Nero, que tocava lira enquanto Roma queimava —já Bolsonaro dedilha o Lira enquanto incendeia a Amazônia. Assim, ao se inspirar numa das Agripinas, o sutil Canova teria criticado Napoleão, cesarista de se fazer pintar com a coroa de louros —já que ganhou batalhas e era calvo como Julio César.
Deram o sarcófago do imperador Alexandre Severo de presente para Andrew Jackson. Ele foi categórico: "Não posso consentir que meu corpo mortal seja depositado num repositório preparado para um imperador —meus sentimentos e princípios republicanos me proíbem". Bom, não?
Não. Estátuas de Jackson foram há pouco vandalizadas e destronadas nos Estados Unidos porque o altivo herói tinha centenas de escravos e matou indígenas em massa.
Às vezes, é melhor destronar um aspirante a imperador antes que ele vire monumento. Mas o seu nome não será escrito aqui para evitar um processo por incitação à desordem.
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