Siga a folha

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

Desobediência civil

Vale prestar atenção ao que há de civilmente sintomático em eventos como no Lollapalooza

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Um letreiro do show de encerramento do festival Lollapalooza recomendava: "Desobedeça". Em sentido estrito, fazia referência implícita à proibição prévia do Tribunal Superior Eleitoral de manifestações políticas, mas no sentido largo há toda uma tradição liberal implicada, em que avulta o americano Henry Thoreau (1817-1862), formulador do conceito de desobediência civil.

Para ele, "o melhor governo é aquele que menos governa (...) e quando estiver preparado para isso, serei a favor de um governo que não governa". Isso não significa desgoverno, e sim, em termos de liberalismo, o grau zero de intervenção do Estado na vida alheia.

Charge publicada na página A2 no jornal Folha de S.Paulo em 28 de março de 2022 em alusão as manifestações artísticas que ocorreram durante o festival musical Lollapalooza Brasil 2022, contra o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL), da censura do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), e das teorias de que as urnas eletrônicas são fraudulentas e manipulam os resultados das eleições brasileiras. Na legenda: Olha, quantas vezes eu já disse que colocar o funcionamento da urna em dúvida, acusar fraude eleitoral sem prova e ameaçar o presidente do tribunal não...O quê? artista se manifestando publicamente contra um candidato?!!! (Crédito: João Montanaro/Folhapress) - João Montanaro/Folhapress

As ideias de Thoreau sempre se prestaram a reinterpretações segundo a diversidade das situações nacionais, mas todas convergentes para o pacifismo ou ativismo não violento contra a opressão.

Mahatma Gandhi admitia uma espécie de "substituição progressiva" da violência na luta contra o domínio inglês, ao passo que Martin Luther King excluía qualquer possibilidade de força por parte do que chamava de sua "comunidade amada" ("beloved community"). Nestas duas figuras icônicas do século 20, a desobediência civil foi grande forma ativa de resistência ao poder constituído.

Surpreendente no episódio do Lollapalooza é que algo novo parece estar emergindo não só em termos de artistas e audiências, mas também de participação de estratos da periferia social na esfera pública.

Antes, privilegiava-se a escuta de alguns nomes famosos da MPB, que fizeram ecoar "é proibido proibir" durante a ditadura. Agora, do hip-hop e do funk parte uma nova tensão criativa que, pelo visto nesse festival, não se limitou ao canto e à dança, pois se estendeu a uma forma particular de desobediência à discutível determinação de um tribunal. A certa hora, de grande sinergia entre palco e público, ouviu-se: "Deixa multar!".

Numa sociedade em que as massas se movimentam cada vez mais segundo a lógica do espetáculo, desde o religioso até o musical, recomenda-se prestar atenção ao que há de civilmente sintomático em eventos como esse Lollapalooza.

Primeiro, é de se notar que, sem apelo a lamentáveis e violentas pilhagens de rua, um recado pode ser dado para quem sabe ouvir. Isto é o que John Rawls (1921-2002), o filósofo americano da ética igualitária, entendia como desobediência civil: "um aviso prévio da minoria à maioria". Depois, há um evidente arrefecimento do respeito público a decisões dessa ordem, tão ambíguas que o próprio tribunal acabou proibindo-se de proibir. Um tiro no pé. Afinal, de cima do palco, Lulu Santos já tinha levado juízo aos juízes: "Quem manda em minha boca sou eu".

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas