Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.
George Floyd
A palavra racismo tem pouca idade, mas como entender o mundo sem ela?
Já é assinante? Faça seu login
Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:
Oferta Exclusiva
6 meses por R$ 1,90/mês
SOMENTE ESSA SEMANA
ASSINE A FOLHACancele quando quiser
Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.
O racismo nasceu na França junto com o século 20. Estou falando da palavra, claro: tudo indica que atitudes racistas tenham acompanhado a humanidade desde tempos perdidos na bruma. Mas palavras nunca são só palavras: faz muita diferença existirem ou não.
Quando surgiu (jamais acharam registro mais antigo) na prestigiosa revista francesa de arte e literatura “La Revue Blanche” em 1902, num artigo assinado por A. Maybon, “racisme” já nomeava um conjunto de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia entre raças: “Eu sou verde, você é roxo, verde manda em roxo”.
É uma palavra de conotações críticas desde a primeira infância. Nesse sentido, se opunha a “racialismo”, termo pretensamente neutro que se se baseava em teorias pseudocientíficas —gênero de enorme sucesso no século 19— para atribuir a causas naturais a desigualdade entre as pessoas.
Ou seja, o racialismo era racista até a medula. A ciência de verdade logo complicaria esse jogo, provando a inconsistência da ideia de raça. Hoje se fala em etnia, que é outra coisa.
Contudo, o racismo, que tomava a noção de raça em seu sentido consagrado na linguagem comum, foi ganhando cada vez mais peso cultural. Isso se deve à sua dimensão política.
Nos anos 1930, a palavra se espalhou pelo mundo porque era perfeita para nomear políticas de Estado em vigor naquele momento, em especial o antissemitismo nazista.
“Racism” fez sua estreia em inglês em 1928, a princípio em referência ao cenário político europeu. Em português a importação parece ter ocorrido alguns anos depois, mas o ar do tempo era o mesmo.
Deu no que deu: genocídio.
As guerras anticoloniais e a luta por igualdade de direitos dos milhões de descendentes de africanos escravizados e transportados ao longo de séculos para o Novo Mundo —um processo de libertação ainda em curso— garantiram que a palavra jamais caísse em desuso.
Nos últimos anos, a centralidade do racismo —e portanto do antirracismo— tem sido reforçada por levas de refugiados e pela ascensão de governantes racistas de direita em diversos países, inclusive no Brasil. A palavra tem pouco mais de um século, mas é impossível entender o mundo sem ela.
Faz tempo que seu sentido se expandiu. De “conjunto de crenças” assim-assado (com a aura de respeitabilidade que essa formulação impessoal possa evocar), transbordou em acepções menos assépticas.
Passou a designar também um angu de caroço de preconceitos torpes, uma atitude de hostilidade em relação a certas pessoas com base na cor de sua pele ou em outros traços físicos e culturais.
E, em boa hora, um crime.
Hoje é comum encontrar o substantivo fazendo par com o adjetivo estrutural. Trata-se de uma novidade importante no processo de amadurecimento da palavra lançada pela “Revue Blanche” (a ironia do nome!).
Racismo estrutural é aquele que se confunde com a paisagem, de tão arraigado e plasmado em práticas, representações culturais, códigos não escritos, modos de entender e ver o mundo.
É por causa dele que três em quatro pessoas mortas pela polícia no Brasil —um dos países de polícia mais letal em todo o mundo— são negras. É também por causa dele que isso até hoje não se tornou um escândalo nacional daqueles de parar tudo.
Que o gelado, espantoso assassinato de George Floyd, um acontecimento que degrada toda a humanidade simplesmente por ter acontecido, nos ajude a abrir os olhos.
Receba notícias da Folha
Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber
Ativar newsletters