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Gentil, secretária de Otavio Frias Filho atuou como bússola e anteparo

Ana Keli de Oliveira trabalhou com o diretor de Redação por quase 25 anos

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São Paulo

Para além de um grande furo de reportagem ou de uma informação bombástica, só havia um evento capaz de interromper o fluxo de informação e trabalho de um jornalista na Redação da Folha. Era quando o telefone tocava e, do outro lado da linha, ouvia-se a voz aveludada e a pronúncia precisa de Ana Keli de Oliveira.

Durante quase 25 anos, Keli foi secretária-executiva de Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha de 1984 a 2018, ano em que ele morreu. Era ela quem trazia a repórteres e editores recados do chefe, quando não o próprio chefe em linha —o que colocava tudo mais em suspenso.

Altamente exigente, Otavio distribuía mais críticas do que elogios, e era Keli quem intermediava essa pressão. A depender do interlocutor, da urgência ou da gravidade do assunto, ela podia adiantar o teor da conversa e o humor do chefe em relação a ela. “Se prepara que vem chumbo grosso”, antecipou certa vez para um editor pouco antes de passar a ligação.

“Passei a minha carreira inteira tentando desmitificar a figura do Otavio”, diz. “Falava-se que ele era isso ou aquilo, mas o Otavio era só mais uma pessoa. Por isso eu encorajava os jornalistas a falarem mais diretamente com ele”, conta.

Ana Keli de Oliveira na Redação da Folha, onde foi secretaria-executiva de Otavio Frias Filho por quase 25 anos - Eduardo Knapp/Folhapress

“Eu gelava cada vez que a Keli me ligava porque eu sempre ficava nervosa em falar com o Otavio. Só que, chegando lá na sala da direção de Redação, a tranquilidade e a gentileza dela sempre me acalmavam”, conta Erika Palomino, que fez história na Folha com a coluna Noite Ilustrada, de 1992 a 2005, e hoje é diretora do Centro Cultural São Paulo. “Sempre achei ela o máximo. Com sua elegância natural, ela já colocava mesmo uma moral em quem chegava ali.”

Embaixadora do chefe, Keli criava pontes e operava contenções com a mesma cordialidade e respeito. Se, por um lado, ela aproximava editores e jornalistas do diretor de Redação, por outro era parte do seu trabalho selecionar a enxurrada de demandas para ele, que chegavam todos os dias por e-mail, carta e telefone. Elas nunca ficavam sem resposta —especialmente quando vinham de leitores.

Atuou como uma espécie de chefe de gabinete, despachando e monitorando pedidos e compromissos, à frente de uma equipe de à época duas assistentes, dois auxiliares administrativos e três auxiliares de Redação.

Keli declinava convites despropositados e contornava insistências descabidas e, às vezes, a um sinal do chefe, Keli contava cinco minutos e interrompia a conversa do momento, anunciando o início de uma reunião inexistente numa sala de outro andar.

“A Keli era um muro de flores”, brinca o escritor e jornalista Bernardo Ajzenberg, que foi secretário de Redação e ombudsman na Folha no início dos anos 2000. “Isso quer dizer que ela servia de anteparo e era firme nessa função, que era mais do que necessária. Ao mesmo tempo, era de flores porque sempre muito educada e cortez”, explica.

Ajzenberg descreve a secretária-executiva de Otavio Frias Filho como alguém “de um profissionalismo radical” e de “total confiança”, que sabia “distinguir o que era ou não importante ou urgente” e que, portanto, “oferecia uma bússola dentro do mar tumultuoso que é a Redação de um jornal”.

Keli se lembra bem do tamanho da ficha que caiu para ela no dia em que o ex-ombudsman veio se despedir. “Ele me agradeceu pelo meu trabalho e por ter sempre proporcionado o melhor contato dele com Otavio. E foi quando eu ganhei consciência do poder que eu tinha naquela posição.”

Ela conta que percebia esse poder nos telefonemas que dava cotidianamente a profissionais da casa e também nos olhares das pessoas na Redação. “Sempre me preocupei em não fazer uso do poder inerente à minha posição na empresa e busquei quebrar protocolos, chamando as pessoas para tomar um café na máquina que ficava na minha sala, colada na sala do Otavio”, conta.

Mas Keli não chamava a atenção só por ser uma extensão do próprio chefe. Negra de pele escura numa Redação quase toda branca, Keli se destacava ainda por ser uma mulher bonita e dada a looks exuberantes. Uma fashionista “avant la lettre”, que vestia dourado, brilho e estampas de animais muito antes de elas ganharem status nas passarelas da moda. Era impossível não notá-la.

“A Keli era um fundamento da Redação”, avalia Palomino, colunista de moda pioneira do jornal. “De certa maneira, ela antecipou a tendência do afrofuturismo, com seus looks super empoderados e cheios de personalidade. Isso num tempo em que a Redação era bem careta na forma de se vestir.”

Keli conta nunca ter sofrido racismo no trabalho, mas mantém viva na memória a reação de um dirigente do grupo ultraconservador TFP (Tradição, Família e Propriedade) que, depois de meses de conversas ao telefone com ela, resolveu aparecer de surpresa na sede da Folha. Keli pediu que o encaminhassem a uma sala, para onde foi explicar que não era possível falar com Otavio sem hora marcada.

“Eu entrei na sala: negra, de calça rasgada e com uma bota de salto altíssimo e estampa de bicho. Ele me olhou de cima a baixo, estupefato, e perguntou quem eu era. ‘Sou Keli, secretária do Otávio’”, lembra ela. “Ele mal conseguia falar”, gargalha.

Criada em Guarulhos, na Grande São Paulo, filha de uma dona de casa e de um funcionário público, Keli conheceu ainda criança, nas aulas de balé, a amiga que a levaria anos depois para a Folha.

Renata Aparecida dos Santos, hoje secretária-executiva do atual diretor de Redação, Sérgio Dávila, conta que sempre quis trabalhar na Folha, enquanto Keli sempre quis ser secretária-executiva.

“Ela acabou me arrastando para o curso técnico de secretariado e eu, depois, acabei levando ela para a Folha”, conta Renata, que soube de uma vaga no departamento de publicidade e indicou a amiga de infância.

Depois de dois anos, surgiu uma vaga de assistente na Secretaria de Redação e, pouco depois, o cargo pelo qual se notabilizou. “Otavio tinha uma memória absurda e queria atender a todos os pedidos individualmente. Eu me sentia colocada à prova a todo instante.”

Keli deixou o jornal alguns meses depois da morte de Otavio e, desde então, trabalha nos projetos da viúva do jornalista, Fernanda Diamant: a livraria Megafauna e a editora Fósforo.

Da longa experiência cotidiana, Keli carrega sua visão particular sobre o jornalismo.

“O jornalismo para mim é um elo importante dos cidadãos com a vida e o mundo, em suas mais diversas facetas. Tem essa capacidade de nos conectar com o que está acontecendo, permitindo que formemos opiniões e tomemos posições sobre as coisas”, avalia.

“Aprendi muito sobre a responsabilidade do jornalismo. Tanto é que hoje, para mim, é muito difícil ouvir as pessoas falarem mal da imprensa”, diz.

“Porque eu vivi 25 anos dentro disso, e sei que a imprensa está sujeita a cometer equívocos, sim. Mas sei também que a imprensa que eu testemunhei é muito comprometida com a verdade e com a responsabilidade de levá-la ao seu leitor.”

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