'O Imortal' é inteiramente envolvente e diabolicamente bem escrito
Autor deixa impressão, porém, de estar empenhado em cruzar fronteiras do eu com papéis falsos
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O incidente deflagrador de “O Imortal” —último romance do diplomata Mauricio Lyrio— é a outorga, num futuro próximo, do Nobel de Literatura a um ficcionista brasileiro: o também diplomata Cássio Haddames.
Sobre a brevidade de sua obra —três romances quando da nomeação—, o próprio Haddames dirá em dado momento: “Se tamanho fosse documento, Alicia preferiria os homens”. Alicia é outra deflagração no romance.
Obcecado pela argentina que assiste a seu discurso, Haddames dá início a uma ofensiva transnacional de sedução. Se Alicia nos aparece a princípio apenas como imagem de fulminação, Lyrio se ocupa em dar-lhe as dimensões devidas à medida que avançamos: representa-se então que Alicia é lésbica, casada, possivelmente brilhante.
Mesmo assim, cede aos avanços de Haddames. Por quê? Lyrio, criterioso até às vírgulas, não ignoraria isso. A chave aqui, parece-nos, vem de Machado, de suas crias ambíguas. Uma névoa se põe ali onde os manuais berram que deveria sempre fazer tempo claro: no que move os entes da ficção.
Lyrio fricciona seu antipático protagonista contra personagens de extremo interesse. Resultam centelhas memoráveis. Ressalte-se também o momentoso da obra. Como se sabe, o Nobel de Literatura foi posto em pausa até 2019, e os escândalos de assédio que em parte motivaram o recesso não geraram tanta comoção popular quanto o hiato a que se forçaram os membros do grêmio. Até que ponto o cerco de Haddames a Alicia não é assédio, puro e simples? Que faz o leitor nesta cerração?
Felizmente, o livro não trata só da vida sexual de um Nobel brasileiro. É também, por sua arquitetura pluralizada em muitas vozes, registros e perspectivas, um aceno ao que se tem feito de mais consequente em ficção até hoje; um exercício de projeção e imaginação inteiramente envolvente; um mosaico de desilusões políticas e pessoais; uma espécie de cartilha de tópicos fraturantes do momento, ao longo da qual tangenciamos questões climáticas, traumas da ditadura, a homofobia de nossa intelligentsia, a asfixia da mulher por sua condição de “musa” etc.
Pelo profissionalismo, o romance será para alguns um êxito total. Para outros, assomará como um passatempo elegante para iniciados. O que não se pode negar é que é diabolicamente bem escrito.
Mas ante obra tão defendida, como furtar-se à impressão de que estamos diante de um autor empenhado em cruzar certas fronteiras do eu com papéis falsos? Todas as críticas que poderíamos fazer ao romance, Lyrio encontra maneiras de antecipar no próprio livro (seja na diarística de Cássio, seja em comentários feitos a seus romances).
Ismar Tirelli Neto
Poeta, é autor de ‘Os Ilhados’ e ‘Ramerrão’ (7Letras)
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