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Riachão era um sambista feliz na contracorrente do samba triste

Era comum ver o músico, morto aos 98 anos, cantando sozinho no ônibus ou na fila do banco em Salvador

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Na contracorrente de certa tradição de tristeza na música popular brasileira, Riachão era um sambista feliz. Morto de causas naturais nesta segunda-feira (30), aos 98 anos, o artista baiano portava a sua alegria incomum no vestuário de cores vivas, com a camisa aberta até o peito, e no cotidiano de personagem vibrante das ruas de Salvador, o seu palco preferido.

Era comum vê-lo cantar sozinho num ônibus, a caminho da Cantina da Lua, no centro histórico, ou surpreendê-lo em voz alta numa repartição pública, sem dúvida entoando “Retrato da Bahia”, samba-exaltação recorrente nas rodas de bambas —“Quem chega na praça Cayru/ E olha pra cima, o que é que vê?/ Vê o elevador Lacerda/ Que vive a subir e a descer”.

Retrato do sambista Riachão, morto aos 98 anos - Rodrigo Sombra

“Para mim, não tem tristeza. Mesmo uma música sendo triste, eu estou cantando com o coração alegre”, disse o compositor, numa entrevista há 12 anos. No samba da Bahia, as obras de Riachão e Batatinha são complementares na bela oposição poética de seus universos.

Batatinha era o sambista da melancolia. “Meu desespero ninguém vê/ Sou diplomado em matéria de sofrer”, ele canta em “Diplomacia”. Riachão, a alma que não pede licença. “Onde eu cheguei, está chegado/ Se não gosta de mim, dê no pé”, ele canta em “Camisa Molhada”. Como define o músico Paquito, ex-produtor de ambos, “a alegria desmedida da axé music está em Riachão”.

De batismo Clementino Rodrigues, nascido em 1921 no Garcia, bairro soteropolitano de grande presença negra, Riachão iniciou a sua carreira na Rádio Sociedade da Bahia, na década de 1940. Em programas de auditório comandados pelo cronista Antonio Maria, ele formava uma dupla sertaneja –isso mesmo– com o músico Sabiá.

Ainda no elenco da rádio, o artista conheceu Jackson do Pandeiro, que gravaria três composições suas, dentre elas “Queima de Judas (Judas Traidor)" e “Saia Rota”. Popular em Salvador, ele passou a ser chamado de “cronista musical” por se inspirar em episódios extravagantes da capital baiana, como a exposição de uma baleia na praça da Sé.

O ano de 1972 marca o renascimento de Riachão. No retorno do exílio em Londres, os tropicalistas Caetano Veloso e Gilberto Gil gravaram num compacto simples o samba “Cada Macaco no seu Galho”, na medida para marcar o reencontro com a vida brasileira. “O meu galho é na Bahia/ Xô xuá/ O seu é em outro lugar.” No disco “Tropicália 2”, de 1993, eles fariam uma revisita a esse clássico.

Mesmo com sua popularidade, a discografia de Riachão é modesta, com belos momentos nos LPs “Samba da Bahia”, de 1973, dividido com Panela e Batatinha, e “Sonho de Malandro”, de 1981, álbum solo financiado pelo Desenbanco. O álbum “Humanenochum”, lançado pelo selo Caravelas, em 2000, indicado ao Grammy Latino, representou um ponto de inflexão no reconhecimento nacional de sua obra.

Produzido por Paquito e J. Velloso, responsáveis pelos últimos registros fonográficos de Batatinha, o disco registrou alguns sambas guardados só na memória de Riachão e atraiu intérpretes como Dona Ivone Lara, Roque Ferreira, Caetano Veloso, Tom Zé, Armandinho, Claudete Macedo, Carlinhos Brown e Sabiá, o velho parceiro na Rádio Sociedade.

“Vá Morar com o Diabo”, uma joia, quase ficaria fora do álbum se ele não a tivesse cantado para Paquito numa fila de banco. “Ela quer me ver bem mal/ Vá morar com o diabo/ Que é imortal.” Evangélico por influência da mulher, o artista fazia longas introduções em shows para justificar a presença do “Diabo” na letra.

No rastro do disco vieram em 2001 o filme “Samba Riachão”, de Jorge Alfredo, premiado no Festival de Brasília, e a regravação de “Vá Morar com o Diabo” pela cantora Cássia Eller, no “Acústico MTV” do mesmo ano. Nessa década, “Cada Macaco no seu Galho” voltava a fazer sucesso com o grupo de pagode Gang do Samba, reafirmando a vocação popular do sambista, que gravaria em 2013 o seu último disco, “Mundão de Ouro”, lançado pela Comando S.

“A minha vida é o seguinte: no meu pensamento, cada macaco no seu galho. Eu tenho um jeito de trabalhar, Batatinha tinha um jeito de trabalhar. Tanto faz velha guarda como mocidade. O artista é chita na loja”, disse uma vez Riachão, a mais alegre das chitas.

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