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Bienal de Veneza relembra seus tempos de fascismo em ano de estátuas derrubadas

Edição de 2020, ano do cancelamento generalizado, evento escolhe passado sombrio para mostra

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Veneza

Logo na entrada, um cartaz mostra, num desenho de tons suaves, a proa sinuosa típica da gôndola veneziana envolta por rosas, pelo mar e pela programação da primeira exposição internacional de arte de Veneza —uma festa com serenatas, concertos, espetáculos teatrais, competições esportivas e de fogos de artifício. O ano era 1895, e assim estreava o evento cultural que se tornaria um dos mais relevantes do mundo.

O líder fascista Benito Mussolini tocando violino - Reprodução

Mas basta dar cinco passos dentro da mostra "Le Muse Inquiete - La Biennale di Venezia di fronte alla storia" (as musas inquietas —a Bienal de Veneza diante da história) para constatar que a frugalidade ficaria restrita aos primeiros dos 125 anos da instituição, que, além das artes visuais, congrega hoje os rumos do cinema, do teatro, da arquitetura, da música e da dança.

Já na primeira das 13 salas do pavilhão central dos Giardini se desfaz a impressão acolhedora causada pelo cartaz inicial. Uma tela grande escancara em vídeo a chegada de Adolf Hitler à Veneza para encontrar Benito Mussolini em 1934, durante a 19ª edição da Bienal de Arte.

Multidões, suásticas e uniformes militares marcaram a primeira vez que os dois ditadores se viram pessoalmente.

No mesmo espaço estão cenas de Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista, visitando o Festival de Cinema em 1936, viagem que repetiria nos anos seguintes, fazendo com que o evento veneziano tivesse papel importante na consolidação do eixo Roma-Berlim.

Num ano marcado, em praças públicas e virtuais, pela derrubada de estátuas e pelo cancelamento generalizado, a Bienal de Veneza escolhe evidenciar suas próprias passagens sombrias.

Joseph Goebbels em sua mesa em 1933 - Atelier Bieber/Nather

"A mostra percorre o século 20 analisando os momentos de transformação, crise e revolução que se entrelaçaram à história da Bienal. E a afirmação do fascimo na Itália, com a consequente fascistização da Bienal, é o primeiro momento de grande crise dos anos 1900", disse Cecilia Alemani, curadora da próxima Bienal de Arte, em 2022, à Folha.

"Entre 1928 e 1942, há uma mudança progressiva da instituição, tanto internamente quanto em seus conteúdos artísticos. A Bienal se torna um instrumento de propaganda fascista", afirma.

Italiana de Milão que vive em Nova York, Alemani assina a direção artística da mostra atual com os outros cinco responsáveis setoriais da Bienal de Veneza. Inaugurada no fim de agosto, a exposição fica em cartaz até 8 de dezembro.

A curadora conta que a decisão de começar o percurso expográfico justamente pelos anos do fascimso também aconteceu porque o arquivo de onde saíram muitos dos documentos exibidos foi criado em 1928 e porque o nascimento de outras três áreas da Bienal —música (1930), cinema (1932) e teatro (1934)— aconteceu sob o regime.

Outro legado desse período é a abertura da Bienal ao exterior, seja por meio da construção de pavilhões nacionais nos Giardini, seja pela realização de mostras promovidas pela instituição em outros países.

"O confronto com a cultura internacional era certamente um aspecto importante da propaganda fascista. Mas isso não significava uma abertura a tendências artísticas diversas. Ao olharmos a arte exibida entre a segunda metade dos anos 1930 e a Segunda Guerra, tem pouca coisa notável além de temas tradicionais de guerra, família e maternidade", diz a curadora.

De forma cronológica, a mostra vai percorrendo outros momentos geopolíticos espinhosos, em que as manifestações artísticas aparecem em meio a boicotes, censuras, acusações, protestos, agressões físicas e, vez ou outra, como representantes de novas linguagens e tendências.

Não é uma exposição sobre a evolução das disciplinas artísticas, mas sobre como a instituição manteve ligação perene com os acontecimentos do século 20, e a maneira como os testemunhou, os influenciou e se permitiu ser influenciada.

É sobre como soube avançar, por cima das próprias fraquezas, e inspirar outras bienais pelo mundo —a de São Paulo, criada em 1951, teve atuação direta do órgão veneziano— até se firmar como farol das artes contemporâneas, especialmente a partir de 1999, quando os curadores passaram a ter verdadeira independência.

Amparada por fotos, vídeos, instalações musicais, obras originais, cartas e recortes de jornais, a mostra relembra momentos como quando Bertolt Brecht, convidado em 1951 e em 1961, viu sua companhia de teatro Berliner Ensemble, na Alemanha comunista, ter o visto de entrada negado duas vezes pelo governo italiano, então mergulhado no contexto da Guerra Fria.

"Jeff and Llona (Made in Heaven)", obra do artista plástico Jeff Koons - Reprodução

Outros dois episódios mereceram amplo espaço: os protestos estudantis de 1968, com as reações policiais e dos artistas da 34ª Bienal de Arte, e o golpe de estado de Augusto Pinochet, em 1973, no Chile. O caso sul-americano motiva diversas ações, entre exposições, filmes, shows e conferências, pela cidade de Veneza em 1974, como as grandes telas pintadas com frases e símbolos militantes, presentes na mostra.

No fim, ganham destaque as obras mais escandalosas dessa história: uma pintura de 1895 de Giacomo Grosso, com mulheres nuas, que chocou a Igreja Católica; o sexo explícito entre Jeff Koons e Cicciolina em "Made in Heaven", em 1990; o filme "Lolita", de Stanley Kubrick (1962); e a participação por poucas horas de um jovem com síndrome de Down em uma performance de Gino de Dominicis, em 1972.

Entre tanto material exposto para leitura, chama a atenção a boa interação entre a expografia leve e ágil da dupla de designers italianos Formafantasma e o indispensável folheto, que identifica e explica os tantos documentos.

Continuam submersos, porém, aspectos como a desigualdade de gênero ao longo desses 125 anos. Primeira mulher a fazer a curadoria da Bienal de Arte, Alemani constatou em sua pesquisa que as artistas representam só 1% dos nomes participantes, algo que pretende mudar na próxima edição. "É uma questão da nossa sociedade e da cultura em todas as suas manifestações. É preciso reconhecer que existe um problema que não espelha mais a realidade em que vivemos", afirma.

A atriz Sue Lyon em cena do filme "Lolita", de Stanley Kubrick, de 1962 - Reprodução

Sobre o trabalho em andamento para a edição de 2022, em meio à pandemia e todos os seus efeitos sobre a produção e o consumo cultural, a italiana diz estar confiante na habilidade dos artistas em absorver e digerir as grandes mudanças da história de forma criativa e inteligente.

"Para mim, a maior lição é lembrar que a Bienal atravessou crises às vezes bem maiores dessa atual e que conseguiu sair mais forte e renovada."

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