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Brasil tem espaço de destaque em exposição no espanhol Reina Sofía

Um dos principais museus do mundo celebra pesquisas radicais de Walter Zanini ao lado de outras produções da América Latina

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Mario Gioia

Crítico de arte e curador independente

Uma arte brasileira de marcado caráter experimental, aberta a novos meios e linguagens, integrada a ações próximas —e também arriscadas— realizadas nos países vizinhos da América Latina.

Desse substrato, uma figura se agiganta —Walter Zanini, morto em 2013, que capitaneou posturas arrojadas à frente do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, o MAC, de 1963 a 1978, e liderando as edições de 1981 e 1983 da Bienal de São Paulo.

Tal diagnóstico pode ser constatado em recente exposição do Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofía, um dos principais em âmbito mundial.

"Episódio 2 - Os Inimigos da Poesia: Resistência na América Latina" segue até 26 de julho no museu em Madri dentro da remodelação de grande parte da coleção da instituição, com peças feitas entre 1964 e 1987. A partir de novembro, todos os seis capítulos apresentados serão exibidos por ao menos três anos e com um acento latino-americano mais realçado.

Cerca de 50 obras de artistas brasileiros ou radicados por aqui foram compradas pelo Reina Sofía e são exibidas atualmente a partir das discussões da equipe de curadores, que conta com a paulistana Isabella Lenzi, de 34 anos.

Graduada na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e com mestrado no MAC uspiano, é um dos nomes emergentes na curadoria brasileira e acumula experiências anteriores em centros como a Whitechapel londrina e a Fundação Mapfre, na capital espanhola.

Na cidade natal, Lenzi conseguiu durante sete anos, até 2019, tornar o Consulado Geral de Portugal um espaço respeitado no circuito da cidade. Em individuais e coletivas, apresentou trabalhos de nomes como o histórico poeta português E.M. de Melo e Castro, que morreu no ano passado, e Grada Kilomba, de incensada carreira internacional.

Em entrevista por email e telefone, a curadora e crítica de arte discute alguns dos pontos que nortearam a seleção, como evitar uma perspectiva homogênea sobre a produção do continente, a busca de trabalhos históricos e traçar pontos de contato entre artistas de diversas investigações e lugares.

Além da presença brasileira, o recorte exibe medalhões do continente como os chilenos Roberto Matta, que viveu entre 1911 e 2002, e Eugenio Dittborn, o uruguaio Luis Camnitzer e a argentina Marta Minujín.
Num museu receptivo à arte brasileira —podemos lembrar as mostras sobre Mário Pedrosa, em 2017, a individual de Lygia Pape, em 2011, e a coletiva "Desvíos de la Deriva", com curadoria de Lisette Lagnado, em 2010, entre outras—, a remodelagem ainda continua, com o próximo episódio da coleção relendo os anos 1980 e 1990, com participação de Leonilson e Hudinilson Jr., por exemplo.

Neste segundo momento, o foco recai com mais força sobre o conceitualismo latino-americano e seu vigor mesmo nos anos de chumbo, com regimes ditatoriais perdurando por anos em variados países e em geral estigmatizando manifestações artísticas por meio de instrumentos de censura.

"Parecia fundamental desfazer essa ideia de que o conceitualismo latino-americano é periférico em relação ao americano ou ao europeu", considera Lenzi. "No contexto da América Latina, esse questionamento conceitual é também um exercício de resistência diante da repressão e violência do Estado."

Para conseguir fugir do aparato repressor, artistas por todo o continente radicalizaram suas ações e criaram processos em que o coletivo, o público e a participação ativa de quem anteriormente apenas via os trabalhos contribuíam para a própria existência da arte naqueles anos sob rígida vigilância.

"Ao produzir obras desmaterializadas e efêmeras, feitas com nada ou quase nada, com materiais precários e perecíveis, ou por meio de ações e performances que utilizam o corpo como instrumento de expressão, crítica social e denúncia, também questionam a objetualidade e o valor de consumo da arte", diz ela.

Dessa forma, para driblar os canais oficiais e restritivos, instituições de âmbito variado —universitárias, independentes ou autogeridas— tomaram o pulso da situação e criaram estratégias de atuação, radicalizando procedimentos usados no passado.

Vídeo sem título feito pela artista Sonia Andrade - Divulgação

Uma das mais famosas foi o CAyC, Centro de Arte e Comunicação, liderado por Jorge Glusberg, que dinamizou a atuação de artistas não apenas na Argentina, mas espalhando atividades até em São Paulo, em parceria com o MAC.

O grupo chileno Cada, Coletivo Ações de Arte, de 1979 a 1985, usou a performance como linguagem-chave na leitura crítica do momento histórico em seu país, a partir de ações de nomes como Lotty Rosenfeld e Diamela Eltit.

A figura de Walter Zanini então ganhou ressonância maior, a ponto de um dos mais importantes museus do mundo reservar em sua coleção —renovada— uma sala dedicada à sua atuação e interlocução com artistas de variadas gerações, origens e linguagens nas décadas de 1960, 1970 e 1980.

"O MAC do Zanini era um espaço alternativo e emergente, um laboratório e refúgio para a pesquisa, produção e experimentação, aberto às novas práticas e radical em um momento de repressão. Naqueles anos, surgia uma geração de artistas interessados em trabalhar a partir da apropriação das novas mídias e tecnologias de comunicação de massa para criar obras e circuitos alternativos, à margem da oficialidade, do mercado da arte e da censura", conta Lenzi.

Entre outros, artistas hoje prestigiados como o espanhol Julio Plaza, que depois se radica em São Paulo, a gaúcha Regina Silveira e Letícia Parente, Ivens Machado, Anna Bella Geiger e Sonia Andrade, todos esses quatro moradores do Rio de Janeiro, exploraram as novas tecnologias da época e testaram os limites dos suportes tradicionais da arte naqueles anos, em que hibridismo de meios não era apenas um chavão textual.

Os processos artísticos resultavam em peças de diferentes materialidades como a arte postal, o livro-objeto, a videoarte, a arte em Xerox, a arte ambiental, o videotexto e o super-8, entre muitos outros.

"Buscamos destacar o papel do Zanini no fomento à produção de videoarte. Ele comprou e deixou à disposição dos artistas uma das primeiras câmeras Sony Porta Pack a chegar no Brasil e consolidou no MAC um local, o Espaço B, para produção, experimentação, debate e exibição de obras realizadas com esse meio. Antes disso, também foi responsável pela internacionalização da produção de muitos dos pioneiros do vídeo no Brasil", afirma a curadora.

Garimpando com muita pesquisa obras que foram exibidas em algumas das principais exposições naqueles anos —hoje analisadas desse modo, mas que passaram ao largo do mainstream visual tempos a fio—, vistas poucas vezes e praticamente inéditas, Lenzi pôde retrabalhar figuras e movimentos pouco celebrados.

'Pare Agora', da série 'O Povo Brasileiro', de Pietrina Checcacci - Divulgação

A ítalo-brasileira Pietrina Checcacci é uma. Presente faz pouco na coletiva "Farsa", organizada por Marta Mestre e Pollyana Quintella no Sesc Pompeia, em 2020, emerge logo à abertura do espaço expositivo nesta mostra do Reina Sofía.

"A Pietrina participou com seus estandartes de 'Apocalipopótese', promovida por Oiticica no contexto do 'Arte no Aterro', idealizado pelo Frederico Morais, e da 'Festa das Bandeiras', ritual de celebração e resistência realizado também em 1968 na praça General Osório, no Rio, ao lado de Vergara, Glauco Rodrigues e Leirner, entre outros."

"Me emociono todas as vezes que cruzo o longo corredor do museu e vejo lá no fundo a bandeira da Pietrina", acrescenta. Ela tem sua peça na mesma sala dedicada à contracultura e à tropicália dos anos 1960 centrada mais em Glauber Rocha que em Oiticica.

"Os manifestos de Glauber 'Uma Estética da Fome', de 1965, e 'Das Sequoias às Palmeiras', de 1970, serviram como eixos discursivos e conceituais para a construção da sala", afirma a curadora.
Do cinemanovista baiano há um fragmento de "Terra em Transe", de 1967, e materiais documentais do pouco visto "Cabezas Cortadas", de 1970, rodado na Espanha durante o exílio do genial diretor.

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