Descrição de chapéu Tóquio 2020

Só dinheiro explica Olimpíada em meio à pandemia, diz ex-atleta e pesquisador

Jules Boykoff afirma que, para o COI e patrocinadores, não importa se competições ocorrerão em meio a onda de Covid-19

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Juliana Sayuri

Jornalista e historiadora, com doutorado pela USP e pós-doutorado pela UFSC, é autora de “Paris – Palestina”, entre outros livros

[RESUMO] Não há dúvida que Tóquio-2020 deveria ser cancelada, afirma ex-atleta olímpico e cientista político em entrevista à Folha. Para Jules Boykoff, pandemia criou as condições ideais para repensar o formato atual dos Jogos Olímpicos, que demanda investimentos públicos e gera lucros para o COI e grandes empresas, e intensificar o movimento que questiona a própria existência do megaevento esportivo.

Ex-atleta olímpico, Jules Boykoff, 50, não está animado com a contagem regressiva para Tóquio-2020, cuja abertura está marcada para 23 de julho. Ao contrário: o que lhe desperta atenção é o movimento "NOlimpíada", o ativismo antiolímpico que ganhou tração nos últimos tempos diante da realização dos Jogos em plena pandemia de Covid-19.

Desde que deixou os campos de futebol profissional, onde representou o time olímpico dos EUA, Boykoff se especializou em ciência política e atualmente é professor da Universidade Pacific, no Oregon.

Autor de "NOlympians: Inside the Fight Against Capitalist Mega-sports in Los Angeles, Tokyo and Beyond" (nolimpíadas: por dentro da luta contra mega-esportes capitalistas em Los Angeles, Tóquio e outros lugares) e "Power Games: a Political History of the Olympics" (jogos de poder: uma história política das Olimpíadas), o acadêmico passou uma temporada no Brasil entre 2015 e 2016 para investigar e analisar os preparativos dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro.

Jules Boykoff, de frente, com roupas pretas e uma gravata vermelha. Ao fundo, é possível ver toras de madeira cortadas e empilhadas
Jules Boykoff, ex-atleta olímpico e professor da Universidade Pacific, no Oregon (EUA) - Jessi Wahnetah/Divulgação

Na época, ele acompanhou ativistas do Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas, que monitorou intervenções urbanas e articulou ações contra consequências adversas dos megaeventos esportivos na cidade.

Desta vez à distância, às vésperas de Tóquio-2020, Boykoff continua acompanhando movimentos que se opõem não só aos Jogos na pandemia, mas ao modelo dos Jogos per se: 23 de junho, marco da contagem regressiva de 30 dias para a abertura da Olimpíada, foi o #NOlympicDay, data de protestos em Tóquio, Los Angeles, Seul e Sydney, entre outras cidades.

Além da atual anfitriã japonesa, o movimento, diz o autor, já mira as próximas competições, no inverno de Pequim (2022) e nos verões de Paris (2024) e Los Angeles (2028).

"O que está acontecendo em Tóquio está despertando diversas questões políticas além da pandemia: quem, afinal, se beneficia dos Jogos? Eles deveriam existir tal como existem?"

O que quer dizer "NOlimpíada"? Um movimento de ativistas do mundo todo que se reuniram para desafiar a lógica dos Jogos Olímpicos, para confrontar os impactos negativos da realização do megavento esportivo por onde ele passa.

Críticas às Olimpíadas remetem, na verdade, há muito tempo: na Grécia, é certo dizer que já há resistências desde 1896, ano dos primeiros Jogos Olímpicos da era moderna. Indivíduos contrários à realização já destacavam que o custo seria muito alto para Atenas. Quer dizer, há críticas desde o princípio.

Entretanto, escrevi especialmente sobre grupos que se organizaram décadas depois, como os ativistas antiolímpicos de Denver (que recebeu os Jogos Olímpicos de Inverno de 1976), uma coalizão que atravessou o espectro político, incluindo conservadores e liberais, para protestar contra o uso de dinheiro público para financiar um evento como esse.

Depois se formaram grupos em Toronto (Canadá) e Chicago (EUA), que eram contrários às candidaturas das cidades para ser sedes olímpicas —Toronto na década de 1990 e Chicago nos anos 2000.

Mas o momento mais importante para compreender o movimento antiolímpico atual foi Vancouver, que recebeu os Jogos Olímpicos de Inverno de 2010. O que vimos lá é o que vemos atualmente: mobilizações nas ruas, mas também tentativas de mudar as regras do jogo por dentro, isto é, nos corredores do poder, pressionando políticos eleitos para influenciar as decisões.

Depois de Vancouver, essa estratégia também marcou o Rio: uma estratégia por fora, com ativistas protestando nas ruas e na internet, e por dentro, com lideranças participando de audiências da Câmara Municipal, acadêmicos publicando artigos na imprensa e assim por diante.

Tóquio também? Sim, mas Tóquio traz outro elemento, que é a pandemia.

O COI (Comitê Olímpico Internacional) se consolidou como uma indústria olímpica, como dizem autores como [o sociólogo escocês] John Horne e [a socióloga canadense] Helen Jefferson Lenskyj. Trato o assunto mais em termos de capitalismo de celebração, isto é, um elemento especial de celebração do capitalismo em que a sociedade se sujeita ao risco econômico para financiar, mediante impostos, um evento da magnitude da Olimpíada, enquanto instituições particulares (COI e empresas patrocinadoras) colhem os benefícios, os lucros no fim da festa. Isto é, quem paga é o país ou a cidade, mas o dinheiro vai para quem já tem dinheiro.

A Olimpíada é um empreendimento econômico que reflete uma dimensão política do mundo, a prevalência dos interesses do capital. Há quem diga, inclusive, que a Olimpíada é antes de tudo um empreendimento econômico, com um pouquinho de esporte para entreter aqui e ali.

Tóquio-2020 mostra isso claramente, com mais clareza que eu já vi —e estudo o assunto intensamente desde 2009. Tóquio está na difícil situação de abrigar esse enorme evento durante uma pandemia global. O único motivo pelo qual isso avança é o capitalismo de celebração, o dinheiro que está em jogo para os já ricos e poderosos.

No caso japonês, é um misto do capitalismo de celebração com o que [a autora canadense] Naomi Klein define como capitalismo de desastre. Que motivo há para celebrar? Sabe quem vai ficar feliz no fim? O COI quando ver o saldo no banco.

Cerca de 73% da renda do COI vem da transmissão das competições —no caso dos Estados Unidos, da NBC; 18% vem das empresas patrocinadoras, como Dow Chemical. Para eles, tudo bem ter competições passando na internet e na TV, mesmo que as arquibancadas estejam vazias, mesmo que do lado de fora das arenas a cidade esteja enfrentando outra onda de Covid-19.

Não fosse a pandemia, imagina que protestos contra a Olimpíada teriam tanto destaque? A maioria dos ativistas antiolímpicos em Tóquio e certamente os ativistas que já estão articulados em Los Angeles têm uma dimensão anticapitalista, que muitas vezes não é mencionada —em Los Angeles, por exemplo, o grupo principal surgiu da organização Socialistas Democráticos da América, que tem uma perspectiva socialista e internacionalista.

São ativistas que tomaram o mantra "NOlympics anywhere", quer dizer, sem Olimpíada onde quer que seja. Eles não estão apenas contra a Olimpíada em Tóquio na pandemia, mas categoricamente contra a Olimpíada enquanto fenômeno político e econômico.

Eles tiveram mais destaque devido ao contexto do coronavírus, um momento em que mais pessoas estão vendo o que está por trás do COI e da Olimpíada com mais clareza. Cada vez mais pessoas estão abertas para ouvir a mensagem dos ativistas, inclusive para além do Japão.

O que está acontecendo em Tóquio está despertando diversas questões políticas, de fundo e além da pandemia, que, antes, ficavam mais restritas a certos grupos: quem, afinal, se beneficia dos Jogos? Eles deveriam existir tal como existem?

A seu ver, eles deveriam existir tal como existem? Pessoalmente, penso que Tóquio-2020 deveria ser cancelada, sem dúvidas.

No livro "NOlympians", argumento que este é o momento ideal para desacelerar e analisar profundamente o que é o projeto olímpico, diante do que está acontecendo em Tóquio durante a pandemia e do que vai acontecer em Pequim, apesar das acusações de diversas violações de direitos humanos por lá.

É o momento de apertar o pause nesse calendário, discutir novas ideias e novas pessoas para reorganizar a proposta do que devem ser os Jogos.

A maioria dos ativistas têm uma posição mais dura que a minha. Eles defendem que é preciso abolir inteiramente a Olimpíada. Entendo o que eles querem dizer e concordo até certo ponto, mas argumento que é possível engajar e dialogar para construir outro tipo de Olimpíada —não que o COI historicamente tenha sido aberto ao diálogo, mas, neste momento de tantas críticas, talvez mude.

A princípio, Tóquio-2020 tinha um discurso de reconstrução relacionado a Fukushima. No adiamento para 2021, o foco mudou para uma reconstrução pós-pandemia. Como o sr. vê a mudança? Tóquio-2020 foi construída com base em duas mentiras. A primeira: em 2013, quando o então primeiro-ministro, Shinzo Abe, ficou diante do COI e foi perguntado sobre o que estava acontecendo em Fukushima depois do desastre de 2011, ele disse que estava tudo sob controle, o que não era verdade e todo o mundo sabia.

A segunda mentira: enquanto estavam preparando Tóquio para ser cidade-sede, recursos na verdade foram retirados de Fukushima e investidos na capital, conforme denunciaram ativistas e acadêmicos.

Agora, temos uma terceira mentira, que é a ideia de mostrar ao mundo que a pandemia já passou, vencemos o coronavírus e tudo está sob controle.

A verdade é que o COI adora destacar ideais e símbolos vagos, mas não gosta de discutir o que está realmente acontecendo. É como se uma esperança vaga valesse mais que evidências, fatos, relatos, história.

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