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Artistas cubanos protestam contra ditadura mesmo em meio a prisões e decreto

Ilha socialista vive maiores atos de rua em três décadas, com milhares pedindo acesso à comida e saúde

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Recorte de 'Cultura Profilática', do artista cubano Hamlet Lavastida David Brandt/Divulgação galeria Bethanien

São Paulo e Salvador

De dentro de seu apartamento em Havana, onde estava confinado por causa da pandemia, Hamlet Lavastida avistou um homem suspeito vindo em direção ao prédio. Era uma manhã no fim de junho, e ele acabava de voltar de uma temporada em Berlim. Minutos mais tarde, o agente de segurança do estado bateu na porta, se apresentou como Darius e o levou, mas antes disso Lavastida conseguiu ligar rapidamente para uma amiga.

O artista de 38 anos é um nome em ascensão no circuito internacional, tendo já participado de residências artísticas no Caribe, na Colômbia e na Polônia. "Cuba tem uma complexidade muito grande, e precisamos nos aproximar mais disso, em vez de termos a imagem típica dos charutos e do café", disse ele, num vídeo sobre sua obra, há alguns anos, com aparente paixão pelo país no tom de voz. Em fotografias, vídeos, pôsteres e colagens, Lavastida lida de forma crítica com a iconografia de regimes socialistas, tanto da ilha de Fidel Castro quanto da extinta União Soviética.

No fim da sua estada na capital alemã, ele apresentou na galeria Bethanien uma grande instalação de papel recortado chamada "Cultura Profilática", montada em duas paredes. Faziam parte da obra a transcrição de um interrogatório policial feito a um fotógrafo cubano e também uma carta do poeta Heberto Padilla, já morto, ao governo revolucionário de Cuba em 1971, escrita sob coação enquanto estava preso em Villa Marista, cárcere de prisioneiros políticos apontado como lugar de tortura em Havana.

Lavastida teve esse mesmo destino. O artista ficou desaparecido por três dias até que uma oficial do governo ligou para a sua mãe e a avisou que ele estava detido no lugar, segundo relatou a amiga do artista no Facebook, a escritora Katherine Bisquet. Este domingo marca três semanas da prisão do artista, investigado por "incitação à delinquência", num caso que tem gerado uma grande mobilização na comunidade artística cubana.

Além de inúmeros posts nas redes sociais, artistas e intelectuais fizeram uma ação na feira Arco, em Madri, um dos maiores eventos mundiais do mercado de arte. Eles realizaram uma obra planejada por Lavastida que, segundo relatos de amigos, foi o motivo de sua prisão —artistas cubanos carimbaram em notas de € 5 dizeres de oposição ao regime de Miguel Díaz-Canel e, em cédulas de € 20, a frase "liberdade para o artista cubano Hamlet Lavastida". As cédulas então foram distribuídas pelo evento.

Essa obra é inspirada num trabalho do brasileiro Cildo Meireles, em que ele carimbou notas de um cruzeiro com a frase "quem matou Herzog?", em 1975, durante a vigência do AI-5, o mais duro decreto do regime militar brasileiro. "O Cildo fez isso no momento mais intenso da ditadura no Brasil. Nosso amigo Hamlet propôs refazer esse trabalho, mas foi preso. Isso mostra como podemos ou não podemos fazer arte em Cuba", resume a performer Tania Bruguera, talvez o nome da cena artística de seu país com maior trânsito internacional e uma dura crítica da ditadura cubana.

A prisão de Lavastida é só uma das dezenas que vêm ocorrendo nos últimos anos na ilha socialista, num contexto de repressão da criação e da expressão artística por parte do governo. A demanda por liberdade de pensamento e para que artistas sejam deixados em paz está na pauta dos protestos que têm tomado as ruas de dezenas de cidades da ilha nos últimos dias, considerados por historiadores como os maiores atos locais nas últimas três décadas.

Ao pedido pelo fim da ditadura, uma demanda mais aflorada na classe intelectual, se soma a vontade de milhões de cubanos de terem melhores condições de vida. Escassez de alimentos, filas de horas por comida, apagões, sobrepreço, estrutura hospitalar precária para atender pacientes de Covid-19 e queda do PIB devido à diminuição do turismo em função da pandemia são também motivadores dos protestos, que já deixaram ao menos um morto e mais de cem presos ou desaparecidos, de acordo com a imprensa internacional.

"As pessoas estão fartas", diz Bruguera, em tom exaltado. "O governo não se importa com as pessoas. Há uma distinção clara entre quem sofre e os que estão no poder com suas superbarrigas arrogantes e bem alimentadas, passando férias em Cancún enquanto as pessoas estão morrendo de fome em casas que desmoronam. Esta não é a Cuba bonita que todos os latino-americanos conhecem."

Bruguera é uma conhecida inimiga do regime e já foi presa diversas vezes. Num de seus trabalhos, deixou um microfone aberto em Havana para que as pessoas pudessem falar o que quisessem durante um minuto. Noutro, um cavalo e policiais encurralavam sem aviso prévio os visitantes da Tate, em Londres, para simular um estado de opressão.

Ela agora só tem notícias dos protestos por ligações telefônicas de seus amigos, já que seu acesso à internet foi cortado e há 19 agentes e duas viaturas de polícia vigiando constantemente a entrada de sua casa, para impedir que ela saia para a rua. Parte desses seguranças, conta a sua irmã, Deborah, faz parte dos "boinas negras", um esquadrão de elite ativado pelo governo com o estouro dos protestos, há uma semana.

Marco Antonio Castillo, ex-integrante do coletivo de arte e arquitetura Los Carpinteros, concorda com Bruguera e afirma que o regime de Díaz-Canel não está preocupado com as condições de vida dos cubanos, e sim em proteger a família Castro, em fazer "tudo para que eles tenham uma vida tranquila". Uma democracia poderia levar os Castro e a elite política para a cadeia, "por crimes de sangue e econômicos, que temos muitos", diz Castillo, que conquistou projeção internacional em sua inventiva articulação da linguagem modernista com símbolos políticos de Cuba.

Primeiro governante nascido depois da revolução que instaurou o socialismo, Miguel Díaz-Canel assumiu o governo em 2018 e deu continuidade às mudanças econômicas de Raúl Castro, estimulando o capital estrangeiro e os negócios privados dos cubanos. Seu carisma, no entanto, é bem inferior ao dos irmãos Castro, rebeldes de 1959 que construíram a mística de Cuba tal como a conhecemos.

O regime atual, dizem artistas, tem sido especialmente cruel com os questionadores do estado. Essa onda repressiva se acentuou com o decreto 349, uma das primeiras leis assinadas por Díaz-Canel. Segundo a medida, toda a expressão criativa em Cuba deve ser aprovada pelo Ministério da Cultura antes de ser apresentada em espaços públicos ou privados, ainda que seja na casa de alguém. Ou seja, até músicos e artistas visuais independentes, que pagam por seu material de trabalho e o mostram fora do circuito estatal, ficam subjugados à censura.

O decreto foi uma atualização de uma lei anterior, de 2010, que determinava o pedido de autorização por parte dos artistas só para espaços geridos pelo Estado. Nos anos seguintes, eles puderam apresentar seus trabalhos livremente em lugares privados, como parte de uma abertura política e econômica promovida por Raúl Castro, o que fez com que estúdios de música e galerias de arte prosperassem, sintonizados com as tendências de metrópoles mundiais.

Na noite de Havana, plena da escuridão do racionamento de energia, a Fábrica de Arte Cubano mistura música e arte contemporânea, atraindo centenas de jovens para suas baladas. Em Havana Velha, ladeadas pelo casario arruinado, surgiram galerias modernas, afinadas com os padrões do mercado internacional. Uma delas é a Arsenal, que reformou um alto sobrado para abrigar exposições, abrindo suas janelas para as ruas de ruidosa presença popular.

O decreto de 2018 impôs obstáculos a essa abertura, de forma que “o Estado se torna a única entidade que pode decidir qual arte é aceitável e quem pode ser considerado um artista", afirma Coco Fusco, escritora e curadora cubana radicada em Nova York e que assina um ensaio na próxima edição da revista Serrote, do Instituto Moreira Salles.

Com o novo decreto, peças audiovisuais submetidas à aprovação não devem ter em seu conteúdo pornografia, violência, linguagem vulgar ou obscena, atentar contra o desenvolvimento da infância e adolescência ou conter qualquer material que atrapalhe “o desenvolvimento normal de nossa sociedade em matéria de cultura”. Livros com “conteúdo que lese os valores éticos e culturais” têm a venda proibida, diz o texto.

Fusco afirma que a ditadura está desesperada para combater os dissidentes e compara a intimidação a artistas à repressão a escritores e músicos brasileiros por líderes políticos na ditadura militar e no governo Jair Bolsonaro. Segundo ela, artistas, escritores e intelectuais sempre foram vistos como potencialmente suspeitos e perigosos para o Estado cubano, e qualquer desafio ao controle hegemônico sobre a produção e circulação de ideias e imagens da revolução pode ser criminalizado.

Funcionários do governo afirmam que o decreto 349 não entrou oficialmente em vigor, depois de uma série de protestos da classe cultural, mas, segundo os artistas, a repressão estatal aumentou muito de 2018 para cá.

Uma das ferramentas usadas pelo estado são interrogatórios seguidos de prisões curtas, com duração média de três dias, mas há também casos de detenções longas, como a do rapper Maykel Osorbo, que passou dez meses na cadeia após protestar contra o artigo 349 durante um show, e do também rapper Denis Solis, solto há pouco depois de ter passado oito meses detido por insultar um policial.

Além das detenções, há o método que remete ao cárcere privado, como no exemplo de Bruguera, que tem sua casa sob vigilância constante. Castillo, do Los Carpinteros, relata que alguns artistas estão presos em casa e não podem sair. "E, se querem sair, batem neles ou os enfiam no carro, sequestram, dão voltas pela cidade. E logo o devolvem para casa. Não se configura uma prisão ou um assassinato, mas é uma espécie de tortura. A relação do governo com os artistas é horrível. Se você não é alguém que faz reverência, praticamente é um inimigo, um perseguido e um rejeitado.”

Nem sempre a classe artística combateu o governo. Em 1959, a Revolução Cubana levou à euforia os artistas e intelectuais mais expressivos de Cuba, como o poeta Nicolás Guillén e o escritor Alejo Carpentier.

Mas a vibração cultural dos primeiros anos se esmaeceu com as tensões e dissidências nas décadas seguintes. Na sequência de medidas de embargo econômico, as hostilidades do governo John Kennedy contra o regime convertido ao socialismo se agravaram com a tentativa de invasão da ilha por grupos anticastristas treinados pela CIA, em 1961, e a crise dos mísseis, no ano seguinte.

A fundação do Partido Comunista de Cuba, em 1965, marcou outra virada política. Com a instauração do partido único, cresceu gradualmente o controle cultural, sob influência da Guerra Fria. De apoiadores a inimigos da revolução, os escritores Guillermo Cabrera Infante e Reinaldo Arenas se tornaram casos internacionais de ruptura e desencanto.

O bloqueio econômico ainda pesa no apoio de personalidades estrangeiras ao regime cubano. Depois de seis décadas de choques, os presidentes Raúl Castro e Barack Obama esboçaram uma aproximação entre os países, culminando com a histórica visita do americano a Havana, em março de 2016. Em discurso, Obama se dirigiu ao líder cubano, em defesa de liberdades políticas, e aos congressistas americanos, a favor da suspensão de embargos.

Díaz-Canel atravessa o refluxo dessas tratativas. Persiste a asfixia econômica. O republicano Donald Trump não endossou a distensão e baixou novas sanções financeiras. Perto de abandonar a Casa Branca, voltou a incluir Cuba na lista de países patrocinadores do terrorismo. Eleito no ano passado, o democrata Joe Biden evitou até agora a retomada da linha diplomática de Obama e declarou seu apoio aos manifestantes na ilha.

A aparente dissintonia entre a liberalização da economia e a repressão política é vista como uma insegurança do regime com o ritmo da abertura de Cuba.

Os protestos de agora, aliás, não deixam de refletir mudanças culturais. Nos últimos anos, a exigência de mais liberdade por artistas e jovens cubanos cresceu com a ampliação do acesso à internet no celular e o fenômeno do serviço de “paquetes”, comércio informal de filmes, séries, games e músicas em arquivos de pen drive e HD externo, num drible à censura. Cuba ficou menos ilhada.

A internet também teve papel fundamental na divulgação de um grande protesto de intelectuais, conhecido como o movimento 27N. Em 27 de novembro do ano passado, cerca de 300 artistas ficaram um dia inteiro na porta do Ministério da Cultura para exigir um encontro com o ministro.

O grupo pedia que o governo deixasse de perseguir artistas, parasse de tratar a dissidência como crime e interrompesse a violência contra o Movimento San Isidro, como ficou conhecida a mobilização de artistas e ativistas que haviam feito greve de fome em protesto contra a prisão do rapper Denis Solis. No fim da noite, 32 deles foram finalmente recebidos por comissários, um acontecimento sem paralelos na ilha.

"O ato de 27 de novembro foi visto por toda Cuba pela internet, e acho que isso provavelmente causou algum impacto do tipo 'ei, nós também podemos fazer isso'", opina Bruguera, acrescentado que os atos de agora são totalmente espontâneos e nada têm a ver com os Estados Unidos, como o governo quer fazer crer. O regime afirma que os americanos estão por trás dos protestos, pagando mercenários para desestabilizar a ilha.

O cartunista Osmani Simanca, radicado no Brasil desde a década de 1990, teme a difusão de pedidos de intervenção militar americana vindos da direita de Miami. "Como um cubano vai desejar uma intervenção militar contra a sua pátria? Eliminar o outro pensamento de uma maneira violenta? Querem impor também uma coisa autoritária.” O cartunista acrescenta ainda que "grande parte da oposição em Cuba é conservadora e reacionária".

Depois dos primeiros protestos, a circulação de fake news aumentou o tom beligerante. No WhatsApp, Simanca recebeu um vídeo em que um suposto médico anuncia a morte de um colega numa passeata, ameaçando "costurar com prego" qualquer policial que chegasse ferido ao seu plantão no hospital.

Naquela altura, não havia nenhuma morte confirmada. “Penso que qualquer mudança em Cuba começa pelo fim do bloqueio econômico. Qualquer outra alternativa leva inevitavelmente à violência", ele diz. "As mudanças são necessárias. Mudanças para melhorar e conviver em paz na diversidade de pensamento. Vingança e ódio de uma direita de Miami saudosa de Trump só põem mais gasolina no fogo."

Mesmo com a repressão, muitos criadores insistem em ficar na linha de frente. Em abril, o pintor e escultor Luis Manuel Otero Alcántara passou oito horas diárias, durante cinco dias, sentado num garrote, um instrumento de tortura que deixa as mãos presas às costas e o pescoço imobilizado com uma espécie de coleira, e no qual há um mecanismo que, se acionado, pode levar à morte.

"Convoco as autoridades para que acionem esta catraca e me executem publicamente", provocou ele no Instagram, onde postou uma série de fotografias da performance. Segundo o artista, esta "máquina de matar é semelhante à ditadura cubana". ​

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