Descrição de chapéu
Francisco Carlos Teixeira da Silva

Brasil pode sofrer novo tipo de golpe se continuar rindo de show de horrores de Bolsonaro

Relaxado, mal-ajambrado e chulo, presidente nunca coube na faixa presidencial e levou o país ao caos

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Francisco Carlos Teixeira da Silva

Professor titular de história moderna e contemporânea da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e professor emérito do Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares da Eceme (Escola de Comando e Estado-Maior do Exército)

[RESUMO] Autor defende que presidente deve ser responsabilizado por ameaças ao Estado de Direito e à realização de eleições, que ferem as bases da República. Se permitir que Bolsonaro continue se comportando como um clown de programa de auditório, país pode assistir a uma nova modalidade de golpe.

Golpe de Estado, de forma clássica, “coup d’état” ou “putsch”, tem uma história antiga. Foi conceituado por Gabriel Naudé em 1639 como uma forma de ruptura brusca da ordem constitucional —deve haver uma, instituída por um consenso anterior— pela ação violenta de órgão, instituição ou ente detentor de uma parte do poder do próprio Estado.

Na maioria das vezes, é realizado por um ou mais indivíduos apoiados por uma guarda pretoriana ou uma milícia e se diferencia, especialmente depois da Revolução Francesa, em 1789, de uma transformação profunda da sociedade, que passa “a fortiori” ser chamada de revolução.

Resistindo a escrever um tratado sobre a natureza do golpe de Estado, creio que o Brasil do tempo presente já passou por vários, em especial somando-se a atuação de guardas pretorianas: em 1964, que tanto tentou se fantasiar de revolução, usurpando o nome; em 1968, com a decretação do AI-5 (em 13 de dezembro, uma eterna sexta-feira), que o cronista Carlos Castelo Branco insistiu em denominar de "golpe dentro do golpe"; em 1977 (claro, um 1º de abril), quando Ernesto Geisel fechou o Congresso e, em seguida, alterou as regras eleitorais; e no dia da votação do impeachment de Dilma Rousseff, 31 de agosto de 2016 —este foi um “golpe continuado”, que perdurou até a eleição do atual ocupante do Palácio do Planalto.

Ou seja, temos na história do tempo presente uma larga experiencia de modalidades de golpes de Estado.

Quando banalizamos as declarações de um dirigente político, na condição de presidente da nação, ameaçando o Estado de Direito, o sistema eleitoral e a própria realização das eleições por uma quimérica possibilidade —sem quaisquer evidências— de fraude, podemos ter a certeza de que algo vai muito mal na República.

Na antiga tradição, seria um tremendo crime contra a “pietas”, a necessária devoção pelos deveres com os valores da República, desde o âmbito do lar até o civismo. No entanto, ao que parece, Jair Bolsonaro só compartilha —ou “racha”— seus deveres com o restrito círculo da família. Sua “pietas” é familiar, muito pouco cívica.

O presidente, pois, deve ser advertido e, então, trazido perante sua responsabilidade de afronta aos Poderes constitucionais. Por palavras ameaçadoras, ações e inações, o presidente feriu os valores fundantes da República, sua harmonia e seu pleno funcionamento, seu equilíbrio e sua complementaridade.

Ao mesmo tempo, o conjunto da sociedade civil organizada, em suas associações e entes, deve compreender, como parece ter entendido com certa lentidão, que a face grosseira e patética do presidente, para além do despreparo, oculta um liberticida. Bolsonaro nunca coube na faixa presidencial: relaxado, mal-ajambrado e chulo, levou o país ao caos.

As noções básicas de respeito e de contenção foram enxovalhadas, e ele continua na sua empreitada, vilipendiando o cargo e os símbolos da República e levando a nação ao luto e à tragédia.

Falta ao presidente, além da “pietas”, a principal e fundante virtude da República: a “gravitas”, o peso que os antigos romanos atribuíam aos cargos públicos e que se funde com honra, ética, seriedade e dever. Nada vale exigir do diretor de departamento ou do humilde porteiro do ministério quando o presidente da nação é o pior exemplo do povo.

Na oposição e na mídia, o processo de desconstrução de Bolsonaro, de moto próprio, aprofundou-se ao rés do chão. Nada mais pode ser dito, desenhado ou transformado em charge —e ele sabe disso, se adianta a isso, promove a própria sujidade da representação republicana.

O renascentista François Rabelais nos disse que o riso é uma poderosa arma contra os poderosos. Ele só não contava com a possibilidade de o ditador ser, ele próprio, um clown. Após romper com a “pietas” e ignorar a “gravitas”, ele se transforma no principal instrumento de desconstrução da “dignitas” da República.

Ao agir como um animador do Circus Maximus, participante de programa de auditório onde se manteve por anos, Bolsonaro continua com o mesmo personagem do qual jamais saiu, fornecendo todos os dias, e em especial na programação das quintas-feiras, um rol de absurdos misóginos, antidemocráticos, pornográficos, desrespeitosos com a própria nação —um eterno “panis et circus” calculado como espetáculo de carne fresca para sua plebe.

No “cercadinho” ou em lives, para risos e escárnio, em especial na tentativa de calar a vontade do Senado e do povo sob a ameaça das legiões, corremos o risco de permitir a derrubada da República e a instauração de uma ditadura de calígulas de reality show guardada por seus pretorianos.

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