Siga a folha

Descrição de chapéu The New York Times tiktok

Fãs de Johnny Depp usam TikTok como máquina de ódio contra Amber Heard

Se você acompanha o julgamento pela rede, é provável que não ouça o que os advogados de defesa da atriz têm a dizer

Assinantes podem enviar 5 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Amanda Hess
The New York Times

Eu não segui o julgamento do processo de difamação entre Johnny Depp e Amber Heard. O julgamento me seguiu.

Algumas semanas atrás, imagens do tribunal começaram a saturar meus "feeds" de mídia social. Plataformas que antes me encaminhavam tutoriais pacatos sobre decoração de bolos e memes sobre terapia inspirados por "Família Soprano" passaram a me enviar despachos regulares sobre o processo, todos filtrados pela glorificação de Depp e pela zombaria quanto a Heard.

Johnny Depp e Amber Heard, ex-casal de atores de Hollywood que briga na justiça em processo por difamação milionário - Reuters/AFP

Heard assoa o nariz durante um depoimento e surge um vídeo no TikTok que a acusa de cheirar cocaína no tribunal. Depp ajusta um fio de telefone perto de sua advogada Camille Vasquez e o gesto é reproduzido em câmera lenta e exaltado como exemplo de cavalheirismo. Os advogados de Heard exibem uma série de mensagens de texto violentas entre os dois, e uma criadora de vídeos do TikTok se filma absorvendo as palavras de Depp com reverência ofegante e orgíaca.

Depp está processando Heard, argumentando que ela o difamou num artigo para o The Washington Post em 2018 no qual o definiu como "uma figura pública que representa a violência doméstica"; ela, por sua vez, o processou de volta, argumentando que Depp a difamou quando o advogado dele a acusou de perpetrar uma "trapaça de abuso".

Muitos dos incidentes centrais do julgamento já tinham sido discutidos no tribunal em 2020, quando Depp processou o jornal sensacionalista britânico The Sun por se referir a ele como "marido que bate na mulher". Ele perdeu aquele processo, e o juiz declarou que as acusações de abuso de Heard eram "substancialmente verdadeiras". Mas não ouvi falar sobre nada disso, porque aquele julgamento não foi transmitido ao vivo nem reproduzido obsessivamente na internet.

Na década de 1990, o julgamento de O. J. Simpson por homicídio deu início a uma nova era de notícias sensacionalistas 24 horas por dia, na qual o culto às celebridades e a violência doméstica se fundiram em forma de um espetáculo nacional incessante.

O juiz Lance Ito mais tarde defendeu sua decisão de permitir que o julgamento fosse televisado dizendo que "se você retira as câmeras, de alguma forma está escondendo a verdade do público". Um jornalista que estivesse cobrindo aquele julgamento, disse o juiz, poderia distorcer inconscientemente os acontecimentos "por causa do efeito de filtro de seus vieses pessoais".

Passadas quase três décadas, o julgamento Depp-Heard deixa claro que a presença de câmeras no tribunal é um convite para que os acontecimentos sejam deliberada e até mesmo alegremente adaptados aos caprichos do espectador. Plataformas como o TikTok e o YouTube foram praticamente construídas a serviço de cultos de personalidade, campanhas de assédio ou oportunidades de branding.

Seria de esperar que um julgamento por difamação que opõe duas estrelas de cinema desse origem a uma torrente de memes distorcidos, nas duas direções, mas não é isso que está acontecendo neste caso. Os comentários online durante o julgamento rapidamente avançaram de um roteiro dramático de acusações mútuas a uma campanha de ataque a Heard que parece ter tomado conta da internet.

Como um dos mais lendários galãs de Hollywood, Depp desfruta de uma base de fãs grande e fascinada. Mas sua campanha além disso vem atraindo o apoio de ativistas pelos direitos dos homens, figurões da mídia direitista, proponentes de campanhas de boicote à Disney ávidos por explorar a situação do ator como astro excluído de uma franquia do estúdio, defensores de teorias de conspiração quanto a abuso sexual, investigadores amadores de crimes reais, qualquer pessoa hostil à "grande mídia" e um bando de oportunistas interessados em pegar carona no tráfego gerado pelo julgamento.

Canais do YouTube e contas do TikTok aparentemente inofensivas, dedicadas a comentar assuntos judiciais ou à análise de linguagem corporal, passaram a veicular em massa conteúdo favorável a Depp. Um casal de advogados cuja especialidade são processos por lesões físicas agora dedica seus dias a postar vídeos de dança inspirados pelo tribunal e destinados aos fãs confessos de Depp; um criador de vídeos do TikTok que antes discorria quase exclusivamente sobre animês atraiu milhões de visitantes aos seus vídeos com falsas mensagens de texto de Heard, que ele exibe sobre um logotipo da Disney.

O TikTok é uma plataforma que funciona com base na adesão e premia usuários por embarcar sem questionar demais nas tendências ascendentes e, por isso, figuras inócuas como Lance Bass e a coruja que serve como mascote do app Duolingo acharam importante contribuir para a zombaria com relação a Heard na plataforma. Se você acompanha o julgamento via mídia social, é provável que praticamente não ouça o que os advogados de defesa de Heard têm a dizer.

A atriz Amber Heard conversa com sua equipe jurídica na corte de Fairfax, durante o julgamento do processo do seu ex-marido Johnny Depp - Steve Helber/AFP

Um aspecto importante é que não existe uma câmera só em ação no julgamento conduzido no estado americano da Virgínia. O sistema de pool de câmeras, operado pela Court TV, grava os procedimentos de múltiplos ângulos, que mudam constantemente a fim de oferecer tomadas simultâneas –do banco de testemunhas e da juíza, ou dos réus e dos assentos dos espectadores, lotados de simpatizantes de Depp que viram a noite na fila para conseguir lugares.

A imensa quantidade de material gravado a cada dia permite que os espectadores examinem cada centímetro do tribunal com zelo digno de conspiradores, e gestos vazios e comentários irrelevantes são tratados como se fossem pistas –dúbias– sobre o caso, somados a GIFs humilhantes que mostram as reações de Heard, ou alavancados para construir uma presença charmosa, de "bad boy" despreocupado, para Depp no tribunal —ele faz desenhos em seu bloco de anotações no tribunal! Ele não se lembra dos nomes de alguns de seus filmes!

As provas em apoio das afirmações de Heard –como um vídeo que ela gravou e que mostra Depp se servindo uma taça gigantesca de vinho e quebrando copos na cozinha da casa deles, certa manhã– têm seu valor como prova contestado e terminam usados como tema de memes. Cada dia do julgamento começa com os fãs de Depp se reunindo online e brincando sobre tomar sua "megataça" de vinho no café da manhã.

Os espectadores avaliam a presença de Depp e a de Heard no tribunal como desempenhos estudados, mas é como se os dois tivessem sido escalados para gêneros diferentes de filme, Depp como um herói cômico sedutor e Heard como a vilã histriônica de um thriller erótico da década de 1980.

Os "thumbnails" do YouTube congelam os rostos dos dois em máscaras de comédia e tragédia –ele sempre com um sorriso sarcástico no rosto, ela sempre com uma expressão sofrida. Exceto nos momentos em que sorri, usados como prova de que Heard é desalmada e calculista.

A construção desse padrão dúplice tem algo de caricatural —coraçõezinhos saltitantes para Depp, chifres de diabo para Heard—, e muitos vídeos do TikTok usam como trilha sonora o tema musical da série "Segura a Onda", uma música com algo de circense, como se para aprisionar Heard no papel de palhaça triste.

Qualquer outra pessoa que apareça no tribunal corre o risco de ser transformada em herói folclórico da internet ou difamada como mentirosa. Elaine Charlson Bredehoft, a advogada de Heard, é descrita como uma "Karen" —no passado um termo usado para descrever mulheres brancas racistas, a expressão agora serve como agressão misógina genérica— e é retratada em tons conspiratórios como fã secreta de Depp, enquanto Camille Vasquez é escalada para o papel de parceira romântica de Depp e foi transformada em sensação na internet por suas interações "íntimas" com seu cliente.

Todas as mulheres envolvidas no caos, mesmo que apenas de modo tangencial, são retratadas —imaginariamente— como taradas por Depp. Shannon Curry, uma médica convocada para depor como perita pela equipe de Depp, foi celebrada por sua "troca de olhares" com Depp, do banco de testemunhas. Até o marido de Curry, que ela disse ter levado "muffins" a seu escritório certa vez, foi transformado em um personagem muito querido de ficção de fãs, apelidado de "homem do ‘muffin’". Enquanto isso, partidários de Depp atacaram dois dos peritos que depuseram em favor de Heard, inundando seus perfis no site profissional WebMD de críticas negativas e classificações desfavoráveis.

Mesmo que não sejam capazes de influenciar o julgamento em si, os espectadores ainda podem afetar a opinião pública em tempo real. Assim que um dos cenários de ficção de fãs ganha ímpeto suficiente para decolar, a ideia chega aos jornais sensacionalistas, repletos de reportagens sobre os flertes de Depp no tribunal e suas tiradas épicas no banco de testemunhas.

No passado, os repórteres de jornais sensacionalistas tinham de criar histórias sobre celebridades, mas agora a narrativa vem pronta da mídia social e se torna parte do cânone oficial de Hollywood. Os sites de fofocas regurgitam atividades banais de celebridades na internet como se estas fossem conteúdo favorável a Depp: Jennifer Aniston decidiu seguir Depp no Instagram como "um sinal sutil de apoio", disse uma revista, e Depp retribuiu como "um gesto de ternura".

Mas quando Julia Fox expressou apoio a Heard no Instagram, não demoraram a surgir artigos sobre sua hipocrisia e "completa estupidez". Quando uma celebridade não oferece material dúbio que possa ser explorado, ele pode simplesmente ser inventado —recentemente, um usuário do YouTube editou e dublou imagens do julgamento para criar a impressão de que Jason Mamoa, que contracenou com Heard em "Aquaman", aparecia no tribunal para paquerar a advogada de Depp.

É tentador ignorar tudo isso –recusar oferecer ainda mais atenção e alimentar a máquina. Mas, como no caso Gamergate, que tomou uma controvérsia obscura na comunidade dos "gamers" e a transformou em uma campanha de assédio antifeminista que conquistou a internet e inspirou um movimento direitista mais amplo, esse circo niilista é um evento que tem o potencial de se radicalizar. Quando o julgamento acabar, esta semana, a elaborada campanha de base criada para difamar uma mulher vai continuar, com uma base de apoio estabelecido e um manual de operações de eficácia comprovada. Tudo que falta é um novo alvo.

Tradução de Paulo Migliacci

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas